“A História do Brasil não começou ontem. O “jeitinho” foi
inventado há mais tempo. Levar vantagem em tudo faz parte da brasilidade desde
sempre. Não se cria uma tradição em poucos anos.” (p. 307)
Quando termino esta segunda parte
do livro de Juremir Machado da Silva consigo entender porque sua linguagem precisa
ser debochada, sarcástica, mordaz, algumas vezes insultante, com os celebradores
oficiais da história nacional, muito distante do discurso educado e frio das
produções acadêmicas. De outro jeito, é impossível. Eu, quando termino de ler,
sem ter com quem ser irônico, só consigo ficar envergonhado, triste, enojado. É
mesmo tudo um grande carnaval, uma grande fantasia, onde descobrimos que a
história, aprendida como luminar da racionalidade, pode muito pouco, pode quase
nada. Principalmente porque os homens que lutam pela história não estão muito
preocupados com o que a história vai dizer deles, contanto que não mexam com as
fortunas que conquistaram por todos os meios. Estes meios permitem inclusive pagar,
seduzir versões engrandecedoras de seus fatos, para adiar, se for inevitável, a
descoberta de algo mais perto da verdade. Assim, quando a verdade chegar, será
um elogio da erudição, do talento do pesquisador, nunca um artefato de justiça.
E os historiadores, como Juremir Machado da Silva, são homens com mania de
guardar relíquias e verdades que a ninguém interessa, haja vista que os
documentos apresentados por Juremir e o livro por ele publicado não alterou o ânimo
dos gaúchos em comemorar suas tradicionais farroupilhas, e por que não
federalistas. A revolução farroupilha é a única história que os derrotados
contaram e acabou virando uma guerra sem derrotados.
Fazem naturalmente mais sucesso as
histórias glorificantes, como a contada Walter Spalding, que escreveu “A
revolução Farroupilha para um concurso realizado, em 1934, no Rio de Janeiro. Foi
o único candidato. Mas não ganhou.” (p. 264) Disfarçou mal a farsa que contou
para engrandecer a “nobreza” dos “heróis farrapos” e não levou o prêmio. Por
outro lado, serviu para a construção do mito que até hoje alimenta o imaginário
dos gaúchos mais jovens que, uma vez por ano, constroem um acampamento em Porto
Alegre e revivem o que nunca aconteceu. Para conseguir isso, Juremir começa vários
parágrafos com um “seria preciso esquecer”... Pois bem, esqueceram. “A Semana
Farroupilha, como comemoração oficial do Rio Grande do Sul, fui instituída
coincidentemente em dezembro de 1964, oito meses depois de implantada a
ditadura militar no Brasil.” (p. 299)
O livro termina e deixa o leitor órfão
de motivos para sentir orgulho deste país, termina e ensina o que foram as “‘FAMOSAS
CALIFÓRNIAS’, as incursões gaúchas em terras uruguaias, muitas delas liberadas
pelo famoso Moringue”, o coronel de Caxias que atacou o acampamento de negros
desarmados em Porongos, “para se apoderar de gado e escravos”, “busca-se além de
bois, o gado humano de pele negra para lá contrabandeado” (p.305). Vale dizer
que os homens negros tinham sido libertos pelo “facínora” Fructuoso Rivera, que
ainda teve o desplante de fazer uma reforma agrária. (E estamos em 1830 e pouco.)
Vale destacar que o outro facínora
Solano López, imperador do Paraguai, também não tinha escravo. Aliás, o
Paraguai é o único dos países da região que não se valeu do trabalho escravo.
Aliás, de Solano López à Guerra do Paraguai, agora, de forma mais ligeira
passamos pelos “Voluntários da Pátria”, negros que tinham a promessa de
liberdade caso entrassem na infantaria brasileira. E é lindo saber que, pelo
país que tanto amam, os senhores brancos ofereciam mesmo seus escravos a fim de
que seus filhos fossem poupados de entrar nas fileiras da guerra.
Uma passagem do livro dá um exemplo
do tipo de vida que era oferecido aos negros na escravidão suave do civilizado
Rio Grande do Sul: “Aos vinte e três dias do mês de Janeiro de mil oitocentos e
cinquenta e sete, nesta Vila de Alegrete, faleceu Flora afogando-se voluntariamente
a mulata Flora, e a negra Maria, tendo a mulata Flora afogado suas filhas
Ricarda e Ubaldina, e a Preta Maria afogado sua filha Balbina. Foram os três
inocentes enterrados no Cemitério Novo desta Vila. Todos são escravos de
Francisco da Luz.” (P. 266) Valia a pena saber como vivem os descendentes do “nobre”
Francisco da Luz.
Como uma grande novela, a História
vai pedindo detalhes dos capítulos que perdemos. É por isso que a história do
grande pacificador Duque de Caxias fica engasgada na garganta e, quando a gente
descobre quantas coisas o exército sob seu comando teve que fazer, começa a entender
a tradição que criou um Brilhante Ustra. Entendemos também como o preconceito
racial está intricado na nossa vergonhosa história, quando desvela-se os
diferentes tratamentos dados por Caxias às revoluções Farroupilha e a Balaiada:
“A guerra do Maranhão era feito por ‘bandidos’, enquanto a guerra dos
proprietários era ‘política’.” (p. 272) No caso dos rebeldes do Maranhão, que
tiveram um líder negro (“que criou uma escola de alfabetização e assassinou um
senhor de escravos depois de obriga-lo a assinar duzentas cartas de alforria.” –
p. 271), para conseguir a anistia, era preciso bater os negros. E bateram. A
infâmia é perda total da vergonha: “Os chefes Tempestade e Pio pediram munição
para eliminar os seus negros.” (p. 273)
Mais um nome para trazer para os nossos dias é “Ordenações
filipinas” que eram meios legais de desfazer a alforria, e a proibição do
tráfico de escravos, de 1850, em casos considerados, pelos proprietários,
injustos, tais como ingratidão, falar mal do amo. Há casos muito interessantes
em que o escravo livre só poderá sair para o mundo após a morte de seu senhor
e, em alguns casos, dos filhos deste. É o que Juremir chama “belamente” de “altruísmo
egoísta” (p. 313). Por aí, não é de estranhar que, quando Bento Gonçalves esteve
preso no Rio (?), seu filho reclamasse a tristeza de seu escravo pessoal,
impedido de acompanhar o senhor na prisão. Quando tudo está pelo avesso e
parece normal, naturalmente o escravo sente falta do seu senhor porque sente
falta de ser escravo. (Tarantino não precisou conhecer a história de Bento
Gonçalves para fazer seu Django – provavelmente esta “nobreza” não é uma
exclusividade nossa.)
Juremir ainda dedica algumas tristes páginas a Canudos e
apresenta um Antonio Conselheiro muito mais humano que os militares que o
degolaram – a ele, as mulheres e as crianças do povoado. Para piorar ainda
destrói um Euclides da Cunha, cuja de-formação militar parece responder sua incapacidade
de ver o homem. Afonso Arinos perguntou: “Por que começou essa guerra? Até hoje
não consta que se originasse de crimes ou assaltos praticados pelos jagunços. Por
motivos religiosos não foi. A Constituição garantia a liberdade religiosa. Por motivos
de sedição e revolta também não, porque os jagunços não tinha saído de Canudos
para depor nenhuma autoridade.” Juremir responde: “Foi por preconceito,
ignorância e fanatismo republicano.” (p. 319) E também por um orgulho ferido,
já que um bando de molambos derrotou de três primeiros grupos que o tentaram
debelar – matando inclusive o Coronel Moreira Cesar, o corta-cabeças, que
nomeia a rua mais chique de Niterói.
A última infâmia é a que sofre João Cândido, o almirante
negro de Aldir Blanc e João Bosco, que liderou a revolta da chibata contra os
castigos físicos a que os negros ainda eram submetidos na Marinha brasileira. O
presidente Hermes da Fonseca aceitou as reivindicações dos marinheiros
amotinados e, dois dias depois da rendição, começaram as retaliações, com
expulsões, fuzilamentos, transferência para os seringais. Quando os homens
ameaçaram nova revolta foram bombardeados. “O massacre acabou com boa parte de
um contingente de 600 homens.” Mas João Cândido, expulso, vivendo como
estivador, sobreviveu até 1969. Em 2008, o presidente Lula lhe concedeu
anistia. Não, a família não recebeu nenhum tipo de indenização.
***
Muita coisa para aprender e muitos
outros livros para encher essas histórias que são e sempre estarão incompletas:
ler sobre a Balaiada e seu líder Cosme; ler sobre o patrono do Exército
brasileiro e seu jeito de ganhar as guerras (o que importa é ganhar a guerra,
certo?). Juremir indica uma vasta bibliografia, mas chama atenção para alguns
trabalhos de mestrado e doutorado também.
Enfim, é uma lista longa para uma
noite tão curta. E no final, vivendo a estupidez como estamos vivendo, sabendo
como o povo escolhe seus líderes e como estas lideranças agem já há muito
tempo, fica a pergunta: Pra quê? Pra que buscar ler a história se, afinal, a
história não conta?
Por mim. E vai ter que bastar.
***
Parece um detalhe menor, mas, vamos
lá: apesar de na Balaiada, no Maranhão, poder se estimar uns 10 mil mortos, em
seus três anos de duração, ela foi muito mais barata para o Império do que a revolução
Farroupilha, seus 10 anos e seus três mil mortos. E isso que um negro de 16 a
30 anos valia 400.000 reis¹. Claro, já faz tempo que a carne mais barata do
mercado é a carne negra. A título de curiosidade, seria interessante saber
quanto custará cada vida perdida na segunda tragédia da Vale privatizada.
***
¹ https://pt.wikipedia.org/wiki/R%C3%A9is : “Um conto de réis era uma quantia de grande
valor intrínseco: em 1833, 2$500 era representado por uma oitava (equivalente a
aproximadamente 3,59 gramas) de ouro de vinte e dois quilates,[8] sendo que um
conto de réis corresponderia a 1,4 quilogramas do mesmo material.” Em
01/03/2019, o grama do outro estava em R$157,00. Considerando que peguei
informação no Wikipedia, fazendo uma conta e considerando que eu sou de Letras,
um negro equivaleria a 571 gramas de ouro, ou uns R$90.000,00.
***
Imagem disponível em http://novoshistoriadoresdobrasil.blogspot.com/2013/09/pelo-que-vale-pena-celebrar.html

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