23.3.19

Diário de leituras: história universal da infâmia, de Jorge Luís Borges.

Conheci Borges, já bem adulto, através de dois amigos generosos: Mariel Reis, que, nos corredores de estantes da biblioteca do Centro Cultural Banco do Brasil, leu para um Máximo e um Luiz deslumbrados o conto A casa de Astérion - a partir daí, não foi mais possível pensar o Minotauro diabólico, e isso, inclusive, me ajudou a pensar também em um outro Judas, que apareceria em um conto do meu livro "céu baixo". Anos mais tarde, o amigo Diomar me emprestara alguns livros do argentino e fez a gentileza de nunca os pedir de volta. (Embora fiquem lindos nas estantes, e emprestem um ar intelectual à casa e a seus moradores, os livros merecem destinos maiores que a mera vaidade.)

Depois, pelos caminhos labirínticos da vida, eu que fora criado por um padrasto uruguaio terminei na faculdade de letras da UFF, português-espanhol. Era, portanto, uma questão de tempo me reencontrar com o maior nome da literatura argentina. E foram vários encontros, inclusive vários vídeos com sua inteligência lapidando frases e momentos de modo a constituí-los como paradigmas de um jeito de fazer literatura – e viver, que para Borges é a mesma coisa. Uma delas, que constitui quase que uma lei para mim, surge em resposta a um dos tantos elogios que recebeu por sua obra. Diz algo como: Sí, la vida me ha enseñado algunas astucias. (O uso de “astúcias”, conforme o entendo, compreende uma  dimensão de inteligência e erudição e uma malandragem.)

Não lembro quando li o “História Universal da Infâmia” pela primeira vez, mas sei que ter lido “História regional da infâmia”, do Juremir¹, me inspirou a retomá-lo. Isto porque a História de Juremir diverte-se, contando tristezas, com as estórias do autor de "O Aleph" e "Ficções", seus livros mais famosos. Releio também para descansar na infâmia literária da infâmia dos homens, sobretudo dos homens infames vertidos heróis por tantas estórias vertidas histórias. E também porque é fácil querer voltar a Borges e relembrar, entre tantas coisas, as rodas de leitura (e cerveja) do Ideias à deriva, onde jovens apaixonados por literatura leram e comentaram Borges, Guimarães Rosa, Jack Kerouac, Julio Cortázar e Rubem Fonseca.

Assim, vou me dedicar a reler este Borges que, entre tantas coisas, é babilônico² em diversos sentidos. (Como tudo neste espaço, não haverá a garantia de que seguiremos com nossos interesses até realizá-los – porque a vida tem seus próprios interesses e, muitas vezes, costuma sobrepor os seus aos nossos. Importante é a travessia.)

Vamos lá.

***

O livro é publicado em 1935, e seu autor tem 36 anos, já sendo, como se vê facilmente, um belo prefaciador. Seus rascunhos foram criados entre 1933 e 1934, sendo interessante pensá-lo como diálogos (intertextualidade?) com textos e notícias a que Borges teve acesso. A edição que leio, com tradução de Alexandre Eulálio e revisão de Maria Carolina de Araújo e Jorge Schwartz, é da Editora Globo, de 1998, e tem oito contos, incluindo o clássico "Homem da esquina rosada", e uma seção chamada "Etcétera", com seis sensacionais contos curtos. Alguns destes contos trazem “a origem da inspiração” ou, para sermos mais acadêmicos e respeitarmos a nomenclatura que Borges lhe deu: “ÍNDICE DAS FONTES”, tudo em caixa alta - se considerarmos que o nome do livro, assim como o meu "céu baixo", está grafado todo em minúscula, deve significar alguma coisa. Vejamos três contos.

O impostor inverossímil Tom Castro

O conto, como sabemos, é a narrativa cuja concisão é um atributo central (apensar do que fez Guimarães Rosa) e, neste sentido, Borges é um mestre. Todos os contos são interessantes e solicitam comentários, mas, por permitir uma aproximação maldosa com a atualidade, destaco o “O impostor inverossímil Tom Castro”, com um dos subtítulos mais sensacionais do livro “As virtudes da disparidade”.

Em tom de pilhéria, me fez pensar que Borges homenageou o povo brasileiro dos dias de hoje através da personagem Lady Tichborne. Esta distinta rica senhora inglesa (ou poderia ser nação brasileira) recebera a notícia de que seu filho, “Roger Charles Tichborne, militar inglês criado na França”, falecera no naufrágio do navio Mermaid, saindo do Rio de Janeiro. Como coração de mãe não se engana, a rica senhora estava certa de que seu filho não morrera e publicava em jornais pelo mundo pedidos de informação e ajuda.

Treze anos depois, um Roger Charles Tichborne apresentou-se à mulher desesperada. Olhando o homem que lhe surge, ela finalmente reconhece o filho querido e lhe oferece a generosidade de seu amor e da sua fortuna. Não importava que o primeiro fosse atlético, tez amorenada e cabelos negros muito lisos, e este, gordo, sardento, com cabelos encaracolados. Não importava se a educação do primeiro garantisse correção no uso da palavra inglesa e a do segundo não obedecia ao mais básico de sua gramática – além do desconhecimento total do francês. É sabido que “catorze anos de hemisfério austral e de acaso podem mudar um homem”.

O raciocínio é de uma lógica total e inversa: esta total diferença só poderia ser prova de que eram o mesmo Roger Charles Tichborne. Um farsante farsante se preocuparia em forjar qualquer semelhante. Um autêntico, jamais.

Que um povo (e muitos outros) desapareça não há de ser nada, se esta história lhes trouxer à memória do futuro como símbolo de estultice.

O atroz redentor Lazarus Morell

Este já inicia com um petardo insuperável em acidez e ironia: “Em 1517, o padre Bartolomé de las Casas compadeceu-se dos índios que se extenuavam nos laboriosos infernos das minas de ouro antilhanas, e propôs ao imperador Carlos V a importação de negros, que se extenuassem nos laboriosos infernos das minas de ouro antilhanas. A essa curiosa variação de um filantropo devemos infinitos fatos”. Segue toda uma lista de eventos e criações só possíveis pela presença do continente africano na América

Entre os ofícios de Lazarus Morell, consta o de pastor e ladrão de cavalos, mas entra para o panteão dos infames por estimular a fuga de escravos tristes a fim de vendê-los a novos senhores, dos quais devem fugir novamente, até que conseguissem uma bela quantia das novas vendas. Tudo isso, feito com a concordância dos escravos, que tal como os povos desesperados, acreditam que o capitão do mato é seu amigo.

Não consta que escravos tenham conseguido efetivamente fugir para o norte (a história se passa no feliz e generoso Mississipi), mas há casos de que, dado o tamanho do prêmio pela captura dos fugidos, os próprios homens que estimularam a fuga entregavam o fugitivo (depois de ter recebido do novo senhor) e garantiam o novo prêmio.

Tanto o destino do escravo, quanto dos povos desesperados não importavam, uma vez que Morell, obviamente, não era negro, o que, com um mínimo de jeito para uma infâmia maior, já o libertaria de contar entre os desesperados.

O tintureiro mascarado Hakim de Merv

É deste conto a frase machadiana (de Machado de Assis): “a terra em que habitamos é um erro, uma incompetente paródia. Os espelhos e a paternidade são abomináveis, porque a multiplicam e afirmam”. Numa tradução mais cruel ainda, e talvez mais interessante, melhor, encontrei a paternidade substituída por “cópula”. Como entendo, só esta frase já valeria o livro ou, um pouco menos, o conto. No entanto, é ainda muito mais, sobretudo se o lermos como o li: pensando no brasil de 2019.

Sobre Hakim, escreve: “Sabemos que um irmão de seu pai adestrou-o no ofício de tintureiro: arte de ímpios, de falsários e de inconstantes, que inspirou os primeiros anátemas de sua carreira pródiga. Meu rosto é de ouro (revela em uma página famosa da Aniquilação), porém macerei a púrpura e submergi na segunda noite a lã sem cardar e saturei na terceira a lã preparada, e os imperadores das ilhas ainda se disputam essa roupa sangrenta. Assim pequei nos anos da juventude e transtornei as verdadeiras cores das criaturas. O Anjo dizia-me que os carneiros não eram da cor dos tigres, Satã dizia-me que o Poderoso queria que o fossem e se valia de minha astúcia e de minha púrpura. Agora sei que o Anjo e Satã erravam a verdade e que toda cor é abominável."

Depois de desaparecer, Hakim, usando uma máscara, surge seguido por dois homens que, ele explica aos aldeões, estão cegos porque viram seu rosto. O povo do entorno não o acreditou e alguém deixara escapar um leopardo e a população em polvorosa correu de medo. Quando retornaram, o leopardo estava também cego.

Com tal demonstração de poder, recebeu a admiração do povo e “um harém de 114 mulheres cegas tratava de aplacar as necessidades de seu corpo divino”.

Quando seu palácio foi atacado, dois capitães do exército inimigo, diante de uma encenação insuficiente para colocar-lhes temor, arrancaram-lhe os véus e fez surgir aos olhos de todos o rosto esplendoroso do profeta coberto pelas chagas da lepra.

Como um dos tantos profetas que empestam a atualidade dos países pobres, que frequentam os melhores hospitais e vivem em mansões, e passeiam de helicópteros e aviões, enquanto curam seus fiéis das piores enfermidades , sem, entretanto, conseguir curá-los da miséria:

“A voz de Hakim ensaiou uma mentira final. Vosso pecado abominável vos proíbe de perceber meu esplendor..., começou a dizer.

Não o escutaram e atravessaram-no com as lanças.”

***

As marcas que nos fazem conhecer o Borges eterno (naquilo que é possível a um homem ser eterno) estão já aqui neste jovem de 36: seu riso, seu humor (quase imperceptível ao riso e ao humor brasileiro); seu diálogo com o leitor; o felino; as milhares de referências (algumas verdadeiras, outras modificadas e outras inventadas – afinal, estamos na literatura) para instigar a uma busca interessante, mas, claro, inglória; a lógica do exercício da disparidade, já apontada no conto que critiquei, e que se repete (em “Essa boa ausência de "orientalismo" dá margem a se suspeitar de que se trata de uma versão direta do japonês”, de O incivil mestre-de-cerimônias Kotsuké no Suké.), e se repete, e se repete (O que já é uma marca borgeana também) etc. Poderíamos ver nas repetições a construção do labirinto.

No prólogo da segunda edição, em 1954, um Borges diz que “é barroca a etapa final de toda arte, quando esta exibe e dilapida seus meios” e já “o excessivo título destas páginas proclama sua natureza barroca”. Eu diria que toda criação, quando afortunada por sua crítica, com suas voltas, revoltas e curvas, tende ao barroco, sendo este o estilo natural do Universo. Como estas pequenas palavras de leitor se misturam com as palavras do “de um tímido que não se animou a escrever contos e que se distraiu em falsear e tergiversar (sem justificativa estética, vez ou outra) alheias histórias”, eu não sei, mas elas me saem prazerosas, bonachonas e, espero, astuciosa.

Falta falar muito, mas fiquemos por aqui, que esta resenha já vai grande e amplia o poder do tempo de tornar tudo barroco.

Vejamos o próximo Borges.

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¹ http://ideiasaderiva.blogspot.com/2019/03/diario-de-leituras-historia-regional-da.html
² https://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=13779

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A imagem do livro: https://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=12420

11.3.19

O cearense viu: O silêncio dos outros





Vi o novo filme do Almodóvar e posso dizer que é realmente um NOVO filme, a começar porque é um documentário. Um documentário sobre a lei de silêncio, A ANISTIA GERAL E IRRESTRITA a torturados e torturadores, a executados e executores, a ladrões e roubados, que “organizou” a casa após a morte do ditador espanhol Francisco Franco, ocorrida em 20 de novembro de 1975, após um regime totalitário que durou 40 anos. Não sei se há outros documentários com a assinatura de Almodóvar – que, creio, não é mais um criador, mas uma grife, um conjunto de (bons) criadores que assinam sob esta marca. Este filme-documentário é diferente de tudo que já vi dele e, por sua função extremamente referencial, por sua ação imediata no presente, por sua explosão da metáfora, maior menor que a vida, passa a ser o meu preferido.
Lá, como aqui, buscou-se uma “reconciliação por amnésia”¹, tanto que o pedido de socorro a uma justiça, que não está na Espanha, vai procurar abrigo numa Argentina ainda kichnerista. É um filme revelador de uma história recente, embora, nos últimos tempos, neste tempo de fatos alternativos, do uso descarado da mentira e desavergonhado da ignorância, isso possa não significar muita coisa.
O mais impactante para mim é que ele permite criar uma linha de continuidade entre a ditadura de Franco e o modo de operação de suas irmãs latino-americanas – tudo isso, depois do fim da Segunda Guerra, tendo como laço comum a bênção dos democráticos Estados Unidos, Inglaterra e igreja Católica, entre outros. Permite entender os desdobramentos da Segunda Guerra Mundial, no que convencionamos chamar de Guerra Fria: a disputa dos dois grandes blocos vencedores pelo controle político, econômico e religioso do mundo ocidental, surgidos com a derrota da Alemanha e de seus aliados.
Lá, como aqui, ainda que pelos menos às câmeras ninguém diga, ressoa a fala do atual presidente: “Quem procura osso é cachorro” e, até em maior grau, um aplauso permanente e ostensivo à era franquista. O que é assustador, se consideramos os números de mortos, de desaparecidos, de bebês roubados, de fortunas amealhadas nestes mais de cinquenta anos, porque, conforme esclarece um dos protagonistas: Com a morte de Franco, assume o poder quem sempre esteve no poder com Franco. Daí o imenso mausoléu erguido em homenagem ao generalíssimo.
E isso tudo acontecendo agora. Na Europa dos direitos humanos, da justiça, da liberdade, da “fraternité”...
O filme tem uma dezena de pontos fortes, mas algumas tomam minha mente sem precisar de rever:
1) Há uma passagem em que, parece, um admirador da situação espanhola atual reconhece que uma coisa é estar numa guerra e que, na troca de tiros, se mate e se morra, outra totalmente covarde é que se fuzilem pessoas desarmadas por pensar diferente. “Esto está mal.” Este ponto me lembra o filme Uma noite de 12 anos, sobre a prisão do Mujica, Mauricio Rosencof e Eleuterio Fernández Huidobro: lá, como aqui, e em qualquer ditadura, se exige o silêncio do interlocutor. A preocupação não é apresentar uma argumentação inteligente que desmonte a argumentação inteligente do interlocutor. O objetivo é sempre silenciar totalmente o outro, como se o outro trouxesse uma verdade insuportável, uma verdade que ameaçasse uma outra coisa.
2) A certeza de que os vencedores estão liberados para fazer o que quiserem com os inimigos (e o corpo feminino é o palco da festa dos bichos), mesmo depois que já estão convertidos em derrotados. Aliás, principalmente aí. As valas comuns em que foram colocados 20, 30 corpos de pessoas executadas, me fazem lembrar a fala de Pinochet quando, creio que no filme No, lhe informam que foram encontrados dois corpos dentro de uma única vala: “¡Qué bárbara economía!”
Talvez soe romântico, ingênuo demais, mas esta bestialidade covarde impõe uma derrota invencível ao vencedor. Sim, ele ficou rico, violentou, agrediu e, se tiver sorte, sempre poderá esquecer as boçalidades que fez e o mundo não sabe... Mas, embora migalhe, embora parca, há uma honra nesta derrota que o vencedor não terá e, neste sentido, entende-se a sua luta pelo silêncio... Afinal, a sua vergonha vai respingar na família.
Mas, como disse, é apenas uma esperança mínima, que com certeza não atinge as pedras e as bestas.
3) Os milhares de desaparecidos, roubados de suas mães por, segundo considerações de médicos eugenistas, trazerem no seu DNA o vírus da esquerda. São milhares de casos que continuaram acontecendo até, pelo menos, o início da década de 80. O argumento de uma das mães é um soco no estômago: “É que, em 1980, ser mãe solteira na Espanha, era um péssimo estigma.” Viva um dos países mais religiosos da Europa! Ao que parece, na América Latina, o brasil pulou esta cartilha. Amém.
4) A plena e livre presença da anciã María Martín, cuja voz fraca ecoa as dezenas de cartas enviadas às autoridades pedindo a gentileza de desenterrarem sua mãe, “Faustina López González, fue asesinada el 21 de septiembre de 1936 en Buenaventura (Toledo)”², para que ela pudesse colocar seus restos ao lado do marido. A resposta que recebe a estas cartas, quando recebe, é a resposta da força, da ameaça e a exigência de silêncio. “Yo tenía seis años cuando fueron a por mi madre”, diz María Martín, que morre antes da estreia do filme e, claro, muito antes de conseguir resgatar e enterrar os restos de sua mãe.
5) O amor que a maioria dos espanhóis parece dedicar a Franco, em detrimento ao seu flerte com Hitler (ou?), em detrimento ao número de mortos e desaparecidos, em detrimento ao número de bebês retirados de suas mães (ou?) e que se lhe demostra na quantidade de ruas, praças, cidades que receberam o seu nome ou de seus principais líderes, a começar pelo médico responsável pelo sequestro, é significativo para uma reconstrução no imaginário latino-americano de uma suposta civilização superior na nação-mãe de todas as nações hispânicas. Mais: talvez a violência de um Videla, de um Pinochet, de um Stroessner, de um Ríos Montt (Guatemala), de um Fujimori (Peru)... e a lista é enorme, pois só estamos no nome de frente.

6)  A “belíssima” obra de arte “Mirador de la memoria”4,5, de Francisco Cedenilla, que vai dividindo os blocos do documentário é de uma presença incômoda e significante, pois vai ocupar o lugar vazio da memória – até agora. A obra composta por quatro esculturas humanas sem definição detalhista, que olham de um morro os vales e as cidades aos seus pés, foi alvejada e seu autor concluiu que o atirador completou algo que realmente lhe faltava.
7) Perdi o nome e não consegui achar a música que encerra o documentário e me fez pensar em Mercedes Sosa e seu canto, “y el canto de ustedes que es mi mismo canto, y el canto de todos que es mi propio canto”. Oxalá fosse assim.

Na sessão de sexta-feira depois do carnaval, quando a sessão termina, todos permaneceram em silêncio e em seus lugares para os créditos. Terminando os créditos, uns poucos começaram a sair. Em silêncio. Num outro silêncio.

***

¹https://www.publico.pt/2018/09/15/mundo/noticia/vale-dos-caidos-o-lugar-que-franco-criou-para-recordar-aos-vencidos-que-foram-vencidos-1844082
² https://elpais.com/cultura/2018/02/17/actualidad/1518885444_187538.html
³http://www.rtve.es/noticias/20180224/pelicula-espanola-silencio-otros-premio-heinrich-bll-berlinale/1683900.shtml
4 http://www.elespectadorimaginario.com/el-silencio-de-los-otros/
5 https://cgai.xunta.gal/es/filmes/el-silencio-de-otros
Imagem:
Cartaz https://cineuropa.org/es/film/347041/

Outras páginas interessantes:
https://nuevarevolucion.es/cine-desescombrando-la-memoria-critica-de-el-silencio-de-otros/#
https://www.fotogramas.es/noticias-cine/a25002462/silencio-otros-memoria-historica-querella-argentina-documental-estreno-critica/
http://www.stylefeelfree.com/2018/11/el-silencio-de-otros-documental.html

2.3.19

Diário de leituras: História regional da infâmia, de Juremir Machado da Silva, 2ª parte



“A História do Brasil não começou ontem. O “jeitinho” foi inventado há mais tempo. Levar vantagem em tudo faz parte da brasilidade desde sempre. Não se cria uma tradição em poucos anos.” (p. 307)

Quando termino esta segunda parte do livro de Juremir Machado da Silva consigo entender porque sua linguagem precisa ser debochada, sarcástica, mordaz, algumas vezes insultante, com os celebradores oficiais da história nacional, muito distante do discurso educado e frio das produções acadêmicas. De outro jeito, é impossível. Eu, quando termino de ler, sem ter com quem ser irônico, só consigo ficar envergonhado, triste, enojado. É mesmo tudo um grande carnaval, uma grande fantasia, onde descobrimos que a história, aprendida como luminar da racionalidade, pode muito pouco, pode quase nada. Principalmente porque os homens que lutam pela história não estão muito preocupados com o que a história vai dizer deles, contanto que não mexam com as fortunas que conquistaram por todos os meios. Estes meios permitem inclusive pagar, seduzir versões engrandecedoras de seus fatos, para adiar, se for inevitável, a descoberta de algo mais perto da verdade. Assim, quando a verdade chegar, será um elogio da erudição, do talento do pesquisador, nunca um artefato de justiça. E os historiadores, como Juremir Machado da Silva, são homens com mania de guardar relíquias e verdades que a ninguém interessa, haja vista que os documentos apresentados por Juremir e o livro por ele publicado não alterou o ânimo dos gaúchos em comemorar suas tradicionais farroupilhas, e por que não federalistas. A revolução farroupilha é a única história que os derrotados contaram e acabou virando uma guerra sem derrotados.

Fazem naturalmente mais sucesso as histórias glorificantes, como a contada Walter Spalding, que escreveu “A revolução Farroupilha para um concurso realizado, em 1934, no Rio de Janeiro. Foi o único candidato. Mas não ganhou.” (p. 264) Disfarçou mal a farsa que contou para engrandecer a “nobreza” dos “heróis farrapos” e não levou o prêmio. Por outro lado, serviu para a construção do mito que até hoje alimenta o imaginário dos gaúchos mais jovens que, uma vez por ano, constroem um acampamento em Porto Alegre e revivem o que nunca aconteceu. Para conseguir isso, Juremir começa vários parágrafos com um “seria preciso esquecer”... Pois bem, esqueceram. “A Semana Farroupilha, como comemoração oficial do Rio Grande do Sul, fui instituída coincidentemente em dezembro de 1964, oito meses depois de implantada a ditadura militar no Brasil.” (p. 299)

O livro termina e deixa o leitor órfão de motivos para sentir orgulho deste país, termina e ensina o que foram as “‘FAMOSAS CALIFÓRNIAS’, as incursões gaúchas em terras uruguaias, muitas delas liberadas pelo famoso Moringue”, o coronel de Caxias que atacou o acampamento de negros desarmados em Porongos, “para se apoderar de gado e escravos”, “busca-se além de bois, o gado humano de pele negra para lá contrabandeado” (p.305). Vale dizer que os homens negros tinham sido libertos pelo “facínora” Fructuoso Rivera, que ainda teve o desplante de fazer uma reforma agrária. (E estamos em 1830 e pouco.)

Vale destacar que o outro facínora Solano López, imperador do Paraguai, também não tinha escravo. Aliás, o Paraguai é o único dos países da região que não se valeu do trabalho escravo. Aliás, de Solano López à Guerra do Paraguai, agora, de forma mais ligeira passamos pelos “Voluntários da Pátria”, negros que tinham a promessa de liberdade caso entrassem na infantaria brasileira. E é lindo saber que, pelo país que tanto amam, os senhores brancos ofereciam mesmo seus escravos a fim de que seus filhos fossem poupados de entrar nas fileiras da guerra.

Uma passagem do livro dá um exemplo do tipo de vida que era oferecido aos negros na escravidão suave do civilizado Rio Grande do Sul: “Aos vinte e três dias do mês de Janeiro de mil oitocentos e cinquenta e sete, nesta Vila de Alegrete, faleceu Flora afogando-se voluntariamente a mulata Flora, e a negra Maria, tendo a mulata Flora afogado suas filhas Ricarda e Ubaldina, e a Preta Maria afogado sua filha Balbina. Foram os três inocentes enterrados no Cemitério Novo desta Vila. Todos são escravos de Francisco da Luz.” (P. 266) Valia a pena saber como vivem os descendentes do “nobre” Francisco da Luz.

Como uma grande novela, a História vai pedindo detalhes dos capítulos que perdemos. É por isso que a história do grande pacificador Duque de Caxias fica engasgada na garganta e, quando a gente descobre quantas coisas o exército sob seu comando teve que fazer, começa a entender a tradição que criou um Brilhante Ustra. Entendemos também como o preconceito racial está intricado na nossa vergonhosa história, quando desvela-se os diferentes tratamentos dados por Caxias às revoluções Farroupilha e a Balaiada: “A guerra do Maranhão era feito por ‘bandidos’, enquanto a guerra dos proprietários era ‘política’.” (p. 272) No caso dos rebeldes do Maranhão, que tiveram um líder negro (“que criou uma escola de alfabetização e assassinou um senhor de escravos depois de obriga-lo a assinar duzentas cartas de alforria.” – p. 271), para conseguir a anistia, era preciso bater os negros. E bateram. A infâmia é perda total da vergonha: “Os chefes Tempestade e Pio pediram munição para eliminar os seus negros.” (p. 273)

Mais um nome para trazer para os nossos dias é “Ordenações filipinas” que eram meios legais de desfazer a alforria, e a proibição do tráfico de escravos, de 1850, em casos considerados, pelos proprietários, injustos, tais como ingratidão, falar mal do amo. Há casos muito interessantes em que o escravo livre só poderá sair para o mundo após a morte de seu senhor e, em alguns casos, dos filhos deste. É o que Juremir chama “belamente” de “altruísmo egoísta” (p. 313). Por aí, não é de estranhar que, quando Bento Gonçalves esteve preso no Rio (?), seu filho reclamasse a tristeza de seu escravo pessoal, impedido de acompanhar o senhor na prisão. Quando tudo está pelo avesso e parece normal, naturalmente o escravo sente falta do seu senhor porque sente falta de ser escravo. (Tarantino não precisou conhecer a história de Bento Gonçalves para fazer seu Django – provavelmente esta “nobreza” não é uma exclusividade nossa.)

Juremir ainda dedica algumas tristes páginas a Canudos e apresenta um Antonio Conselheiro muito mais humano que os militares que o degolaram – a ele, as mulheres e as crianças do povoado. Para piorar ainda destrói um Euclides da Cunha, cuja de-formação militar parece responder sua incapacidade de ver o homem. Afonso Arinos perguntou: “Por que começou essa guerra? Até hoje não consta que se originasse de crimes ou assaltos praticados pelos jagunços. Por motivos religiosos não foi. A Constituição garantia a liberdade religiosa. Por motivos de sedição e revolta também não, porque os jagunços não tinha saído de Canudos para depor nenhuma autoridade.” Juremir responde: “Foi por preconceito, ignorância e fanatismo republicano.” (p. 319) E também por um orgulho ferido, já que um bando de molambos derrotou de três primeiros grupos que o tentaram debelar – matando inclusive o Coronel Moreira Cesar, o corta-cabeças, que nomeia a rua mais chique de Niterói.

A última infâmia é a que sofre João Cândido, o almirante negro de Aldir Blanc e João Bosco, que liderou a revolta da chibata contra os castigos físicos a que os negros ainda eram submetidos na Marinha brasileira. O presidente Hermes da Fonseca aceitou as reivindicações dos marinheiros amotinados e, dois dias depois da rendição, começaram as retaliações, com expulsões, fuzilamentos, transferência para os seringais. Quando os homens ameaçaram nova revolta foram bombardeados. “O massacre acabou com boa parte de um contingente de 600 homens.” Mas João Cândido, expulso, vivendo como estivador, sobreviveu até 1969. Em 2008, o presidente Lula lhe concedeu anistia. Não, a família não recebeu nenhum tipo de indenização.

***

Muita coisa para aprender e muitos outros livros para encher essas histórias que são e sempre estarão incompletas: ler sobre a Balaiada e seu líder Cosme; ler sobre o patrono do Exército brasileiro e seu jeito de ganhar as guerras (o que importa é ganhar a guerra, certo?). Juremir indica uma vasta bibliografia, mas chama atenção para alguns trabalhos de mestrado e doutorado também.

Enfim, é uma lista longa para uma noite tão curta. E no final, vivendo a estupidez como estamos vivendo, sabendo como o povo escolhe seus líderes e como estas lideranças agem já há muito tempo, fica a pergunta: Pra quê? Pra que buscar ler a história se, afinal, a história não conta?

Por mim. E vai ter que bastar.

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Parece um detalhe menor, mas, vamos lá: apesar de na Balaiada, no Maranhão, poder se estimar uns 10 mil mortos, em seus três anos de duração, ela foi muito mais barata para o Império do que a revolução Farroupilha, seus 10 anos e seus três mil mortos. E isso que um negro de 16 a 30 anos valia 400.000 reis¹. Claro, já faz tempo que a carne mais barata do mercado é a carne negra. A título de curiosidade, seria interessante saber quanto custará cada vida perdida na segunda tragédia da Vale privatizada.

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¹ https://pt.wikipedia.org/wiki/R%C3%A9is  : “Um conto de réis era uma quantia de grande valor intrínseco: em 1833, 2$500 era representado por uma oitava (equivalente a aproximadamente 3,59 gramas) de ouro de vinte e dois quilates,[8] sendo que um conto de réis corresponderia a 1,4 quilogramas do mesmo material.” Em 01/03/2019, o grama do outro estava em R$157,00. Considerando que peguei informação no Wikipedia, fazendo uma conta e considerando que eu sou de Letras, um negro equivaleria a 571 gramas de ouro, ou uns R$90.000,00.

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Imagem disponível em http://novoshistoriadoresdobrasil.blogspot.com/2013/09/pelo-que-vale-pena-celebrar.html