23.3.19

Diário de leituras: história universal da infâmia, de Jorge Luís Borges.

Conheci Borges, já bem adulto, através de dois amigos generosos: Mariel Reis, que, nos corredores de estantes da biblioteca do Centro Cultural Banco do Brasil, leu para um Máximo e um Luiz deslumbrados o conto A casa de Astérion - a partir daí, não foi mais possível pensar o Minotauro diabólico, e isso, inclusive, me ajudou a pensar também em um outro Judas, que apareceria em um conto do meu livro "céu baixo". Anos mais tarde, o amigo Diomar me emprestara alguns livros do argentino e fez a gentileza de nunca os pedir de volta. (Embora fiquem lindos nas estantes, e emprestem um ar intelectual à casa e a seus moradores, os livros merecem destinos maiores que a mera vaidade.)

Depois, pelos caminhos labirínticos da vida, eu que fora criado por um padrasto uruguaio terminei na faculdade de letras da UFF, português-espanhol. Era, portanto, uma questão de tempo me reencontrar com o maior nome da literatura argentina. E foram vários encontros, inclusive vários vídeos com sua inteligência lapidando frases e momentos de modo a constituí-los como paradigmas de um jeito de fazer literatura – e viver, que para Borges é a mesma coisa. Uma delas, que constitui quase que uma lei para mim, surge em resposta a um dos tantos elogios que recebeu por sua obra. Diz algo como: Sí, la vida me ha enseñado algunas astucias. (O uso de “astúcias”, conforme o entendo, compreende uma  dimensão de inteligência e erudição e uma malandragem.)

Não lembro quando li o “História Universal da Infâmia” pela primeira vez, mas sei que ter lido “História regional da infâmia”, do Juremir¹, me inspirou a retomá-lo. Isto porque a História de Juremir diverte-se, contando tristezas, com as estórias do autor de "O Aleph" e "Ficções", seus livros mais famosos. Releio também para descansar na infâmia literária da infâmia dos homens, sobretudo dos homens infames vertidos heróis por tantas estórias vertidas histórias. E também porque é fácil querer voltar a Borges e relembrar, entre tantas coisas, as rodas de leitura (e cerveja) do Ideias à deriva, onde jovens apaixonados por literatura leram e comentaram Borges, Guimarães Rosa, Jack Kerouac, Julio Cortázar e Rubem Fonseca.

Assim, vou me dedicar a reler este Borges que, entre tantas coisas, é babilônico² em diversos sentidos. (Como tudo neste espaço, não haverá a garantia de que seguiremos com nossos interesses até realizá-los – porque a vida tem seus próprios interesses e, muitas vezes, costuma sobrepor os seus aos nossos. Importante é a travessia.)

Vamos lá.

***

O livro é publicado em 1935, e seu autor tem 36 anos, já sendo, como se vê facilmente, um belo prefaciador. Seus rascunhos foram criados entre 1933 e 1934, sendo interessante pensá-lo como diálogos (intertextualidade?) com textos e notícias a que Borges teve acesso. A edição que leio, com tradução de Alexandre Eulálio e revisão de Maria Carolina de Araújo e Jorge Schwartz, é da Editora Globo, de 1998, e tem oito contos, incluindo o clássico "Homem da esquina rosada", e uma seção chamada "Etcétera", com seis sensacionais contos curtos. Alguns destes contos trazem “a origem da inspiração” ou, para sermos mais acadêmicos e respeitarmos a nomenclatura que Borges lhe deu: “ÍNDICE DAS FONTES”, tudo em caixa alta - se considerarmos que o nome do livro, assim como o meu "céu baixo", está grafado todo em minúscula, deve significar alguma coisa. Vejamos três contos.

O impostor inverossímil Tom Castro

O conto, como sabemos, é a narrativa cuja concisão é um atributo central (apensar do que fez Guimarães Rosa) e, neste sentido, Borges é um mestre. Todos os contos são interessantes e solicitam comentários, mas, por permitir uma aproximação maldosa com a atualidade, destaco o “O impostor inverossímil Tom Castro”, com um dos subtítulos mais sensacionais do livro “As virtudes da disparidade”.

Em tom de pilhéria, me fez pensar que Borges homenageou o povo brasileiro dos dias de hoje através da personagem Lady Tichborne. Esta distinta rica senhora inglesa (ou poderia ser nação brasileira) recebera a notícia de que seu filho, “Roger Charles Tichborne, militar inglês criado na França”, falecera no naufrágio do navio Mermaid, saindo do Rio de Janeiro. Como coração de mãe não se engana, a rica senhora estava certa de que seu filho não morrera e publicava em jornais pelo mundo pedidos de informação e ajuda.

Treze anos depois, um Roger Charles Tichborne apresentou-se à mulher desesperada. Olhando o homem que lhe surge, ela finalmente reconhece o filho querido e lhe oferece a generosidade de seu amor e da sua fortuna. Não importava que o primeiro fosse atlético, tez amorenada e cabelos negros muito lisos, e este, gordo, sardento, com cabelos encaracolados. Não importava se a educação do primeiro garantisse correção no uso da palavra inglesa e a do segundo não obedecia ao mais básico de sua gramática – além do desconhecimento total do francês. É sabido que “catorze anos de hemisfério austral e de acaso podem mudar um homem”.

O raciocínio é de uma lógica total e inversa: esta total diferença só poderia ser prova de que eram o mesmo Roger Charles Tichborne. Um farsante farsante se preocuparia em forjar qualquer semelhante. Um autêntico, jamais.

Que um povo (e muitos outros) desapareça não há de ser nada, se esta história lhes trouxer à memória do futuro como símbolo de estultice.

O atroz redentor Lazarus Morell

Este já inicia com um petardo insuperável em acidez e ironia: “Em 1517, o padre Bartolomé de las Casas compadeceu-se dos índios que se extenuavam nos laboriosos infernos das minas de ouro antilhanas, e propôs ao imperador Carlos V a importação de negros, que se extenuassem nos laboriosos infernos das minas de ouro antilhanas. A essa curiosa variação de um filantropo devemos infinitos fatos”. Segue toda uma lista de eventos e criações só possíveis pela presença do continente africano na América

Entre os ofícios de Lazarus Morell, consta o de pastor e ladrão de cavalos, mas entra para o panteão dos infames por estimular a fuga de escravos tristes a fim de vendê-los a novos senhores, dos quais devem fugir novamente, até que conseguissem uma bela quantia das novas vendas. Tudo isso, feito com a concordância dos escravos, que tal como os povos desesperados, acreditam que o capitão do mato é seu amigo.

Não consta que escravos tenham conseguido efetivamente fugir para o norte (a história se passa no feliz e generoso Mississipi), mas há casos de que, dado o tamanho do prêmio pela captura dos fugidos, os próprios homens que estimularam a fuga entregavam o fugitivo (depois de ter recebido do novo senhor) e garantiam o novo prêmio.

Tanto o destino do escravo, quanto dos povos desesperados não importavam, uma vez que Morell, obviamente, não era negro, o que, com um mínimo de jeito para uma infâmia maior, já o libertaria de contar entre os desesperados.

O tintureiro mascarado Hakim de Merv

É deste conto a frase machadiana (de Machado de Assis): “a terra em que habitamos é um erro, uma incompetente paródia. Os espelhos e a paternidade são abomináveis, porque a multiplicam e afirmam”. Numa tradução mais cruel ainda, e talvez mais interessante, melhor, encontrei a paternidade substituída por “cópula”. Como entendo, só esta frase já valeria o livro ou, um pouco menos, o conto. No entanto, é ainda muito mais, sobretudo se o lermos como o li: pensando no brasil de 2019.

Sobre Hakim, escreve: “Sabemos que um irmão de seu pai adestrou-o no ofício de tintureiro: arte de ímpios, de falsários e de inconstantes, que inspirou os primeiros anátemas de sua carreira pródiga. Meu rosto é de ouro (revela em uma página famosa da Aniquilação), porém macerei a púrpura e submergi na segunda noite a lã sem cardar e saturei na terceira a lã preparada, e os imperadores das ilhas ainda se disputam essa roupa sangrenta. Assim pequei nos anos da juventude e transtornei as verdadeiras cores das criaturas. O Anjo dizia-me que os carneiros não eram da cor dos tigres, Satã dizia-me que o Poderoso queria que o fossem e se valia de minha astúcia e de minha púrpura. Agora sei que o Anjo e Satã erravam a verdade e que toda cor é abominável."

Depois de desaparecer, Hakim, usando uma máscara, surge seguido por dois homens que, ele explica aos aldeões, estão cegos porque viram seu rosto. O povo do entorno não o acreditou e alguém deixara escapar um leopardo e a população em polvorosa correu de medo. Quando retornaram, o leopardo estava também cego.

Com tal demonstração de poder, recebeu a admiração do povo e “um harém de 114 mulheres cegas tratava de aplacar as necessidades de seu corpo divino”.

Quando seu palácio foi atacado, dois capitães do exército inimigo, diante de uma encenação insuficiente para colocar-lhes temor, arrancaram-lhe os véus e fez surgir aos olhos de todos o rosto esplendoroso do profeta coberto pelas chagas da lepra.

Como um dos tantos profetas que empestam a atualidade dos países pobres, que frequentam os melhores hospitais e vivem em mansões, e passeiam de helicópteros e aviões, enquanto curam seus fiéis das piores enfermidades , sem, entretanto, conseguir curá-los da miséria:

“A voz de Hakim ensaiou uma mentira final. Vosso pecado abominável vos proíbe de perceber meu esplendor..., começou a dizer.

Não o escutaram e atravessaram-no com as lanças.”

***

As marcas que nos fazem conhecer o Borges eterno (naquilo que é possível a um homem ser eterno) estão já aqui neste jovem de 36: seu riso, seu humor (quase imperceptível ao riso e ao humor brasileiro); seu diálogo com o leitor; o felino; as milhares de referências (algumas verdadeiras, outras modificadas e outras inventadas – afinal, estamos na literatura) para instigar a uma busca interessante, mas, claro, inglória; a lógica do exercício da disparidade, já apontada no conto que critiquei, e que se repete (em “Essa boa ausência de "orientalismo" dá margem a se suspeitar de que se trata de uma versão direta do japonês”, de O incivil mestre-de-cerimônias Kotsuké no Suké.), e se repete, e se repete (O que já é uma marca borgeana também) etc. Poderíamos ver nas repetições a construção do labirinto.

No prólogo da segunda edição, em 1954, um Borges diz que “é barroca a etapa final de toda arte, quando esta exibe e dilapida seus meios” e já “o excessivo título destas páginas proclama sua natureza barroca”. Eu diria que toda criação, quando afortunada por sua crítica, com suas voltas, revoltas e curvas, tende ao barroco, sendo este o estilo natural do Universo. Como estas pequenas palavras de leitor se misturam com as palavras do “de um tímido que não se animou a escrever contos e que se distraiu em falsear e tergiversar (sem justificativa estética, vez ou outra) alheias histórias”, eu não sei, mas elas me saem prazerosas, bonachonas e, espero, astuciosa.

Falta falar muito, mas fiquemos por aqui, que esta resenha já vai grande e amplia o poder do tempo de tornar tudo barroco.

Vejamos o próximo Borges.

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¹ http://ideiasaderiva.blogspot.com/2019/03/diario-de-leituras-historia-regional-da.html
² https://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=13779

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A imagem do livro: https://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=12420

3 comments:

  1. Uma honra amigo Max. Livros nao são para ser guardados e sim lidos, apreciados e amados. Neste sentido, sei mt bem o quanto os livros de Borges estão em excelentes mãos!

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  2. Para serem...perdoe a falha ;)

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  3. Obrigado sempre. Um livro pode mudar uma vida, e uma vida pode mudar muitas... Abraço .

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