7.4.19

Crônicas de uma cidade fantástica 12: Mantenha a esquerda!


É sexta-feira. Sigo para a aula de Introdução ao Direito – A lei é um último ato de fé antes da força, até porque "Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos." Depois haverá aula de Economia Política e, tal qual o livro do professor Jorge Caldeira, "História da riqueza no Brasil", a gente vai tentar esquecer os mortos de fome, os assassinados, a escravidão, as traições, e ler a formação da riqueza, porque, em que pese a necessidade de apagar Zumbi, Marighela, Luís Gama e os indígenas brasileiros (o único nome que encontro é o de um fantasioso Caramuru), a vida do “mundo” melhorou mais nestes 200 anos que em todo a eternidade para trás. Ainda que o preço – e a julgar pela liderança brasileira e do país mais poderoso do mundo, isso não importe – seja a eliminação de parte dos mais de sete bilhões de habitantes que andam por aqui nos dias de hoje.

Na Saens Pena, um 409 aguarda um número maior de passageiros, ou o horário, para sair. O motorista e o fiscal conversam sobre o motorista x, que tomou um gancho porque rodou no dia anterior e só carregou 400 passageiros. Com o gancho, ele perde a cesta básica. Rapidamente, guardo o texto do Durkheim e tento fazer uma conta: num dia ruim, capaz de punir um motorista, um ônibus, com um turno, pode fazer R$1.600,00 (400 x R$4,0); se multiplicarmos isso por 30, temos um total de R$48.000,00. A imaginação é fértil. Entro no Google, e coloco “Quanto custa um ônibus novo”. Aparece uma espaçonave, muito superior aos nossos coletivos: R$850.000,00. Um mais perto dos que usamos, da Ônibus Bepobus Citta, está por R$389.900,00¹. E eu nem comecei a negociar o preço para comprar 10, ou 20.

Tudo isso, enquanto esperam para aumentar o número de passageiros. Ao ver que os dois atacam o motorista x, penso no vídeo do professor Clóvis de Barros Filho e o papel da ideologia. Decido ir para trás.

“Não há motivo para festa: Ora esta! Eu não sei rir à toa!”

Atrás, já não consigo me dedicar ao estudo. “A rua me chama. Eu tenho que ir pra rua.” São mais de treze milhões de desempregados e, estes dias, quando estava no metrô, a gravação nos lembrava de uma lei que proíbe o comércio de produtos dentro dos carros do trem. São treze milhões de desempregados, mas o que o presidente tem para oferecer é subemprego, informalidade, menos segurança. À noite, as marquises estão lotadas e, toda intervenção, todos os assassinatos ocorridos no último ano não desmontam o medo de andar pelo centro da cidade quando o expediente termina e o “mercado” vai descansar.

Dada a fala do presidente a respeito de não ter nascido para o cargo, mas para ser militar (apesar de ter sido expulso, depois reintegrado, e não ter chegado ao primeiro nível de comando), conjeturo no Facebook uma possível renúncia. Uma conhecida, que dividiu os bancos da UFF, me contesta: “Pode esperar sentado porque em pé vai cansar.”

Penso nos funcionários da empresa de ônibus, penso no escravo que acha a chicotada justo, penso novamente no garçom que atendeu o professor Clóvis², penso na Helena discutindo com as colegas sobre o valor, o respeito à mulher, e sendo atacada por outras meninas, vejo a capa do O Globo que estampa um grupo de mulheres na cadeia de comando do país encabeçada pelo “ministério menos importante”, o da Dalmares; todas conservadoras, diz a chamada. Penso no meu irmão, caminhoneiro, pernambucano, sem plano de saúde, envelhecendo sem carteira assinada, me enviando vídeos que comparam a cobertura da Globo à da Record da visita do presidente a Israel. Ele já incorporou o novo jargão: globolixo. E não faz perguntas.

Nunca entrei na página da minha conhecida, ou, se entrei, nunca comentei nada político com ela. Muito menos em tom irônico, debochado, agressivo. Ela, por outro lado, me mandou as mais estapafúrdias matérias para exaltar o presidente e atacar qualquer um dos que não lhe encontrasse valor. Ela também é dessas pessoas que mandam mensagens religiosas pela manhã, pacificadoras. Que milagre terá acontecido para que, de repente, posso agir desta forma?

Penso no filme “Duas rainhas”. Um pastor conclama sua comunidade a matar Mary Stuart por crimes que ela não cometeu e que, hoje, nem seriam crimes. Penso novamente em Borges, o escritor argentino, seu “História universal da infâmia”, e a estranha coincidência de que muitos dos infames que elenca tenham, em determinado momento da vida, no seu repertório de iniquidades, se passado por pastores.

Chego em Botafogo. Acho que vou tomar um café antes de entrar. Ainda está cedo e pontualidade não parece ser um valor importante para a maioria de nós, brasileiros. Sento numa das dezenas de barracas que fazem o elogio do empreendedorismo brasileiro e peço um café. A atendente, uma senhora, me sorri, me deseja bom dia e garante que hoje o dia será lindo, pois não está sentindo dor nos ossos.

Ao meu lado, um senhor (eu também sou um senhor, é verdade), de tempos em tempos, fala algo para o celular. Tento focar no meu café, mas não há como não perceber que está falando frases num inglês ginasial (igual ao meu, “por supuesto”). Terá uns setenta anos, talvez mais e esforça-se para digitar as frases certas no Duolingo. Então:

“Keep Left!”

Sorrio.

***
² https://www.youtube.com/watch?v=qp-Ou2O6N4o

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