Em 2007, Edgard Cezar Nolasco escreveu um pequeno livro com o
provocador título “Quem tem medo de Clarice Lispector?”, uma série de pequenos
textos ficcionais que brincam com o universo e a vida da escritora de “A paixão
segundo GH” e “A hora da estrela”. Não li o livro de Nolasco, mas li bem
Clarice e nunca entendi a ideia de medo que a sua literatura poderia causar.
Talvez o medo da vertigem que, sim, os textos dessa ucraniana vertida
brasileira provocam. Porém, após a leitura de “Olhos d’água”, de Conceição
Evaristo, e da repercussão que este livro teve nas escolas privadas¹,
principalmente, creio que cabe a pergunta: quem tem medo de Conceição Evaristo?
O que ela nos conta que a literatura, até agora, não contou? (Ou contou, mas
ficou à margem?)
Há alguns meses, publiquei um artigo chamado “Os visitantes, de B.
Kucinski, e a literatura como a desforra possível” e a ideia de uma literatura
da desforra, uma literatura que atrapalhe o sossego entrou como um campo para
tentar refletir a escrevivência de Conceição Evaristo, mas que, no caso, é a
matéria-prima de uma arte pouco preocupada com o jantar da classe média – muito
pelo contrário, o objetivo é ofender o bom gosto (para lembrar aquele belíssima
música de Adriana Calcanhoto). O objetivo é que esta arte atrapalhe as horas,
que ela não seja para fruição, como Clarice também não é, mas que pareça um
soco no estômago – ainda que seja só isso. Como um “canto torto feito faca” que
“corte a carne de vocês”. Aí sim, entendo porque seus filhos não podem ler
Conceição Evaristo, porque eles devem temê-la. (É covarde, mas é justo.)
Uma ideia nunca nasce em apenas um lugar, até porque nem todo
lugar tem terra fértil. Por isso, foi um encontro ouvir a própria Conceição
Evaristo, no podcast capitaneado pelo rapper Mano Brown e pela jornalista
Semayat Oliveira, dizer que sua escrita é também a sua vingança (ao que Mano
Brown coincidiu no que se refere às suas músicas)². Me lembrou aquele filme
“Mil vezes boa noite”, em que Juliette Binoche vive uma fotógrafa de zonas
conflagradas e justifica sua escolha com o objetivo de interromper, pelo menos
um pouco, o jantar, assistindo ao noticiário, das famílias burguesas. (Sei:
tergiverso e, na verdade, as famílias burguesas, e mesmo as de classes médias,
abandonaram o noticiário há muito tempo. Mas continuamos tentando o incômodo.)
Em resumo, cabe entrarmos num breve comentário para dizer porque
“Olhos d’água” assusta tanto esse condomínio privado que todos erigimos para
nos manter a salvos – mas o lobo (de Wall Street) sopra.
Que histórias são essas
Primeiro, é a história de quem apanha. Mas não é uma surra
metafísica, do descobrimento da nossa pequenez em meio a um drama
pequeno-burguês e essa profecia do fim de todos. (Não dá nem tempo.) É a
história dos filhos de Carolina Maria de Jesus que, 50 anos depois, seguem
sobrevivendo numa guerra sangrenta e silenciada – e fazendo o amor desesperado,
como quem sabe que vai morrer daqui a pouco. É o fim da idealização de tudo: as
famílias fugiram dos comerciais de margarina, e das novelas das 8, são negras e
mulatas, quase sempre sem a figura masculina do pai – isso quando a figura do
pai não é, em si mesma, a figura do inimigo. Seus trabalhos não têm glamour,
pois não são doutores, empreendedores, senhoras e senhores de fino trato – são
profissionais daqueles trabalhos que os alunos de um colégio rico elegeram para
apontar os que deram errado. Homens e
mulheres acostumados a não ter um futuro muito maior do que 24 horas – por
isso, o alcoolismo e as religiões do paraíso depois da morte são tão sedutores.
Homens tão carregados de dor que, quando gozam, choram, sintetizando esse
rir-chorando tão comum a alguns personagens. Porque é um gozo para “premiar a
nossa fome anterior, a do momento e a posterior”. É um gozo para fazer gozar
muitos prazeres suprimidos, muitas dores exaltadas.
Se o ato é de “desidealização”, também não sobra espaço para a
maternidade, o amor, que ainda sobrevivem, mas já dentro de uma raiz instintiva.
Se vão todos embora de uma forma violenta, na disputa pelo pão duro da
sobrevivência, é muito difícil construir o afeto poderoso que enche o mundo de
sonhos de uma tranquilidade muito parecida à felicidade. Num mundo tão real, a
loucura é uma opção que o corpo faz para se defender – como fez o de
Duzu-Querença, que “habituou-se à morte como uma forma de vida”. E se não há a
idealização da maternidade, há um mercado gigantesco que, com a hipocrisia que
condiciona o debate público, “come criança”. Em “Olhos d’água”, a mulher não
trai como uma devassa de Nelson Rodrigues – essa idealização de sinal trocado.
Ela trai porque, caso contrário, trairia a si mesma, negar-se-ia o amor que lhe
é seiva, e que lhe é negada no acordo cristão e machista. Porque, se a vida é
breve, é necessário seguir essa pulsão de vida e se permitir, com todo o risco,
com toda a dor, o canto dessa “ave-mãe”. Porque as crianças morrem na guerra, é
preciso que as mães cantem, antes de tudo.
Porque as crianças aprendem a trabalhar o choro como um truque
para o comércio das ruas, um negócio, é preciso que as mães cantem. Porque as
crianças querem crescer e melhorar de vida, porque querem a vida que elas
cresceram vendo na tv, é preciso que as mães cantem. Porque o trem não para na
estação e não leva a lugar nenhum, é preciso que as mães deem um jeito de
cantar. Porque “a gente combinamos de não morrer”, mas simplesmente não vai
dar, é fundamental que todos cantem esta canção de mães que cantam – e porque
cantam, escolheram o que cantar, e, porque escolheram cantar sobre esse
incômodo gigantesco, contam.
“Quando choro diante de novela, choro também por outras coisas e
pela vida ser tão diferente.”
¹ https://www.em.com.br/app/noticia/diversidade/2021/11/22/noticia-diversidade,1324744/livro-vetado-professora-e-afastada-por-indicar-obra-de-conceicao-evaristo.shtml
² https://open.spotify.com/episode/4BnaMQUzUXvDo276bkHs3d
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