28.10.23

Diário de leitura: Olhos d'água, ou Quem tem medo de Conceição Evaristo (parte 1)


Em 2007, Edgard Cezar Nolasco escreveu um pequeno livro com o provocador título “Quem tem medo de Clarice Lispector?”, uma série de pequenos textos ficcionais que brincam com o universo e a vida da escritora de “A paixão segundo GH” e “A hora da estrela”. Não li o livro de Nolasco, mas li bem Clarice e nunca entendi a ideia de medo que a sua literatura poderia causar. Talvez o medo da vertigem que, sim, os textos dessa ucraniana vertida brasileira provocam. Porém, após a leitura de “Olhos d’água”, de Conceição Evaristo, e da repercussão que este livro teve nas escolas privadas¹, principalmente, creio que cabe a pergunta: quem tem medo de Conceição Evaristo? O que ela nos conta que a literatura, até agora, não contou? (Ou contou, mas ficou à margem?)

Há alguns meses, publiquei um artigo chamado “Os visitantes, de B. Kucinski, e a literatura como a desforra possível” e a ideia de uma literatura da desforra, uma literatura que atrapalhe o sossego entrou como um campo para tentar refletir a escrevivência de Conceição Evaristo, mas que, no caso, é a matéria-prima de uma arte pouco preocupada com o jantar da classe média – muito pelo contrário, o objetivo é ofender o bom gosto (para lembrar aquele belíssima música de Adriana Calcanhoto). O objetivo é que esta arte atrapalhe as horas, que ela não seja para fruição, como Clarice também não é, mas que pareça um soco no estômago – ainda que seja só isso. Como um “canto torto feito faca” que “corte a carne de vocês”. Aí sim, entendo porque seus filhos não podem ler Conceição Evaristo, porque eles devem temê-la. (É covarde, mas é justo.)

Uma ideia nunca nasce em apenas um lugar, até porque nem todo lugar tem terra fértil. Por isso, foi um encontro ouvir a própria Conceição Evaristo, no podcast capitaneado pelo rapper Mano Brown e pela jornalista Semayat Oliveira, dizer que sua escrita é também a sua vingança (ao que Mano Brown coincidiu no que se refere às suas músicas)². Me lembrou aquele filme “Mil vezes boa noite”, em que Juliette Binoche vive uma fotógrafa de zonas conflagradas e justifica sua escolha com o objetivo de interromper, pelo menos um pouco, o jantar, assistindo ao noticiário, das famílias burguesas. (Sei: tergiverso e, na verdade, as famílias burguesas, e mesmo as de classes médias, abandonaram o noticiário há muito tempo. Mas continuamos tentando o incômodo.)

Em resumo, cabe entrarmos num breve comentário para dizer porque “Olhos d’água” assusta tanto esse condomínio privado que todos erigimos para nos manter a salvos – mas o lobo (de Wall Street) sopra.

Que histórias são essas

Primeiro, é a história de quem apanha. Mas não é uma surra metafísica, do descobrimento da nossa pequenez em meio a um drama pequeno-burguês e essa profecia do fim de todos. (Não dá nem tempo.) É a história dos filhos de Carolina Maria de Jesus que, 50 anos depois, seguem sobrevivendo numa guerra sangrenta e silenciada – e fazendo o amor desesperado, como quem sabe que vai morrer daqui a pouco. É o fim da idealização de tudo: as famílias fugiram dos comerciais de margarina, e das novelas das 8, são negras e mulatas, quase sempre sem a figura masculina do pai – isso quando a figura do pai não é, em si mesma, a figura do inimigo. Seus trabalhos não têm glamour, pois não são doutores, empreendedores, senhoras e senhores de fino trato – são profissionais daqueles trabalhos que os alunos de um colégio rico elegeram para apontar os que deram errado.  Homens e mulheres acostumados a não ter um futuro muito maior do que 24 horas – por isso, o alcoolismo e as religiões do paraíso depois da morte são tão sedutores. Homens tão carregados de dor que, quando gozam, choram, sintetizando esse rir-chorando tão comum a alguns personagens. Porque é um gozo para “premiar a nossa fome anterior, a do momento e a posterior”. É um gozo para fazer gozar muitos prazeres suprimidos, muitas dores exaltadas.

Se o ato é de “desidealização”, também não sobra espaço para a maternidade, o amor, que ainda sobrevivem, mas já dentro de uma raiz instintiva. Se vão todos embora de uma forma violenta, na disputa pelo pão duro da sobrevivência, é muito difícil construir o afeto poderoso que enche o mundo de sonhos de uma tranquilidade muito parecida à felicidade. Num mundo tão real, a loucura é uma opção que o corpo faz para se defender – como fez o de Duzu-Querença, que “habituou-se à morte como uma forma de vida”. E se não há a idealização da maternidade, há um mercado gigantesco que, com a hipocrisia que condiciona o debate público, “come criança”. Em “Olhos d’água”, a mulher não trai como uma devassa de Nelson Rodrigues – essa idealização de sinal trocado. Ela trai porque, caso contrário, trairia a si mesma, negar-se-ia o amor que lhe é seiva, e que lhe é negada no acordo cristão e machista. Porque, se a vida é breve, é necessário seguir essa pulsão de vida e se permitir, com todo o risco, com toda a dor, o canto dessa “ave-mãe”. Porque as crianças morrem na guerra, é preciso que as mães cantem, antes de tudo.

Porque as crianças aprendem a trabalhar o choro como um truque para o comércio das ruas, um negócio, é preciso que as mães cantem. Porque as crianças querem crescer e melhorar de vida, porque querem a vida que elas cresceram vendo na tv, é preciso que as mães cantem. Porque o trem não para na estação e não leva a lugar nenhum, é preciso que as mães deem um jeito de cantar. Porque “a gente combinamos de não morrer”, mas simplesmente não vai dar, é fundamental que todos cantem esta canção de mães que cantam – e porque cantam, escolheram o que cantar, e, porque escolheram cantar sobre esse incômodo gigantesco, contam.

“Quando choro diante de novela, choro também por outras coisas e pela vida ser tão diferente.”

 Afinal, Conceição Evaristo explica: “Escrever é uma maneira de sangrar”.

 

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¹ https://www.em.com.br/app/noticia/diversidade/2021/11/22/noticia-diversidade,1324744/livro-vetado-professora-e-afastada-por-indicar-obra-de-conceicao-evaristo.shtml

² https://open.spotify.com/episode/4BnaMQUzUXvDo276bkHs3d

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