As Olimpíadas não eram um tema
para mim até as Olimpíadas começarem. O mundo ia (?) mal, com trocentas guerras
(duas entre brancos), uma onda de ódio sendo alimentada via redes sociais (com
o beneplácito dos multibilionários donos das redes sociais) (leia “A máquina do
caos”, de Max Fisher) e uma direita idiotizada, que captura a atenção da
população brasileira, num patético truque de ilusionismo, trabalha para impedir
o debate dos assuntos que realmente importam e envolvem a todos. Mas começaram
as Olimpíadas (como, em 2014, a Copa do Mundo do Brasil disfarçou o Saturno que
cresceria e devoraria milhares dos seus filhos), e imediatamente me tornei um
especialista em Breaking (sim, está na lista dos esportes olímpicos), Luta
Greco-Romana (já ouviu falar do cubano Mijaín López?) e os cinco tipos de
ciclismo. Sim, a única forma de escapar é tampando os ouvidos ou se amarrando
ao mastro do navio. Mas calma! Ceder a esta tentação não é tão ruim assim – e
já aprendemos com Wilde, né?: “A única maneira de libertar-se de
uma tentação é entregar-se a ela”.
Então, o espírito olímpico faz o
seu trabalho de prestidigitação e quase esqueço que o governo anterior acabou
com o Ministério dos Esportes e sucateou qualquer investimento nesta área e na
cultura – e quase esqueço que, no xadrez da governança neoliberal (que não é um
esporte olímpico), o governo de esquerda (?) trocou Ana Moser por Fufuca no
comando do redivivo ministério. Então, o espírito olímpico toma o corpo de uma
menina (a televisão faz questão de destacar que é uma mulher, mas, com mais de
50 anos, qualquer mulher com a idade dos meus filhos será uma menina). O
espírito olímpico se materializa na força e na beleza de Rebeca Andrade, atleta
do Flamengo, e já vencedora nos Jogos Olímpicos do Japão. (Sim, o Flamengo tem
uma das melhores estruturas esportivas do país – e eu quase esqueço os meninos
do Ninho do Urubu. Sim, ela pôde se preparar, mas essa deveria ser a regra e,
só a partir daí, poderíamos começar a falar de algo como mérito.) Ela
simplesmente usou seu talento para chegar ao lugar mais alto do pódio,
competindo com países que, aí sim, levam a sério a formação esportiva de seus
atletas.
(Mas não sejamos tão injustos:
nossas recentes conquistas vêm de uma mínima mudança de postura em relação aos
esportes: a partir de 2004¹, os governos de Lula e Dilma fizeram uma série de
medidas que oferecem bolsas-atleta e também bolsas para atletas de alto
rendimento. Não é nada, não é nada, o aumento do número de medalhas responde.)
Tudo isso não vem ao centro do
que me levou a, além de abandonar a minha indiferença, escrever sobre essa
tradicional metáfora para as nações mostrarem a sua superioridade umas às
outras. O que me move é esta foto, o que me move é o quanto ela me sensibiliza.
De repente, me dou conta que as duas medalhistas ao lado são, apenas, “a
ginasta mais condecorada da história”² e, do outro lado, a estadunidense Jordan
Chiles, de 23 anos, e medalha de ouro no Campeonato Mundial de 2022. Ou seja, a
reverência é feita por companheiras de altíssimo desempenho no esporte e
denota, além do devido merecimento, uma generosidade só possível aos espíritos
mais desenvolvidos, uma cumplicidade que suplanta a rivalidade, inerente a
qualquer esporte, para constituir-se numa irmandade que é muito superior à
lógica da competição do vale-tudo (e do inimigo), tão à mão nestes tempos.
O que me move é que, de repente,
vi três mulheres que, entendendo a dimensão da competição esportiva, não se constrangeram
ao reverenciar a outra. Eram três mulheres negras - e, de repente, reparei como
a maioria das nossas medalhistas é constituída por mulheres; e Rebeca Andrade e
a judoca Bia Souza são as únicas medalhas de ouro (até o momento) (e lembrei da
jovem Rayssa Leal, e da também ginasta Daiane dos Santos). Eram três mulheres
negras que, se não sabem, intuem a história de superação uma da outra. Eram
três mulheres negras.
O que me move é que, de repente,
o espírito olímpico era essas três mulheres negras. (E pensei nas minhas alunas.)
***
¹ Criado pela Lei nº 10.891, de 9
de julho de 2004, (Decreto nº 5.342, de 14 de janeiro de 2005), o Bolsa-Atleta
é o maior programa de patrocínio individual de esportistas do planeta.
²
https://olympics.com/pt/atletas/simone-biles
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