Começando uma caminhada nova (aos
52 anos) no município de Niterói, me vi tendo que “empolgar” uma molecada das
turmas de Aceleração do 6º ano. Meu primeiro movimento, aproveitando o período
de recesso do meio do ano, foi levá-los à biblioteca da escola e “propor” que
todos escolhessem um livro para ler durante o recesso e que, havendo uma
apresentação de cinco destaques da leitura, o aluno faria jus a 10 pontos.
(Sim, precisamos pensar no ponto como moeda de troca na educação, algo que nos
levaria a uma cultura do suborno que, simplificando bastante o problema, acaba
com uma geração de adultos que entendem que fazer um curso superior é o mesmo
que conseguir o diploma de um curso superior. Enfim... é o que temos para
hoje.) Com o tempinho que estou na educação básica, sei que qualquer desafio
trará uma baixa adesão, sobretudo se envolver leitura (ato extremamente
complexo para uma população toda diagnosticada com déficit de atenção), então
propus que, na primeira aula depois do recesso, eu faria uma apresentação
modelo (sempre faço isso com as minhas turmas) a fim de que eles tivessem um
parâmetro mínimo para se direcionar.
Na biblioteca, o curso (não
concluído) de ciência política na Unirio me educou a procurar os livros de
sociologia, história, economia etc., entretanto, por já está parado com vários
livros com leitura em andamento, e pensar que era a oportunidade para ler algo
mais simpático para uma molecada iniciando no mundo da literatura, selecionei
meu primeiro Lygia Bojunga, a renomada editora e escritora ganhadora de
diversos prêmios e traduzida para diversas línguas. Começamos com “A bolsa
amarela”, de 2012, e atualmente na 35ª edição.
Passamos ao trabalho apresentado
aos alunos.
Leitura de A bolsa
amarela (2012), de Lygia Bojunga
Resumo: o livro é um bonito
desenho do poder da imaginação de uma criança, no caso, a pequena Raquel, que
utiliza a sua criatividade para preencher os vazios que a relação com os
adultos da família acaba criando. Sobretudo as vontades que não podem ser
realizadas: a vontade de crescer, a de ser menino e a de ser escritora.
Como essas vontades se justificam
e se esvaziam é o caminho subliminar do livro.
1) A imaginação ilimitada da
criança Raquel – e a pobreza da imaginação do mundo adulto.
Como a pequena precisa de
liberdade, e os adultos não estão prontos a lhe proporcionar, os mecanismos que
ela cria para se expressar (para construir um diálogo com o mundo) entram em
choque com as regras da “vida real” e “dura” dos adultos, tão cheia de
compromissos que beiram à bajulação da tia rica e as divisões bem estabelecidas
entre homens e mulheres, adultos e crianças.
2) O empobrecimento da vida
mental do adulto
Do tópico anterior, deduz-se uma
vida empobrecida, embrutecida, sem espaço para a imaginação e a subversão mesmo
do que está claramente diminuindo a vida de todos.
3) A escolha difícil da história
do Galo Terrível
A imaginação de Raquel a leva a
diversos amigos imaginários e, muito interessante, a um exercício de troca de
cartas com eles. Quando as cartas são descobertas, o irmão mais velho não
acredita e a repreende. Surgem então os amigos de fábula, no sentido de seres
que falam, como o galo Rei, que prefere ser chamado de Afonso, dada a exagerada
prepotência de alguém alcunhado de rei, e o galo Terrível, cujo destino o
preparou para ser um galo de briga e nunca ter um pensamento que não estivesse
ligado à coragem do confronto com outros galos.
A crueldade do pensamento único,
imposto de fora para dentro, gera a luta de Raquel e seus amigos para evitar
que Terrível, já envelhecido, enfrente a última luta.
4) O dilema da escritora Raquel
Ocorre que Terrível foge e vai
enfrentar seu destino e, quando os amigos chegam à praia em que a luta
ocorrera, só encontram suas penas na areia. Os amigos falam que Terrível
morreu, mas a escritora Raquel propõe um fim em que Terrível consegue fugir da
briga para o mar e, daí, salva-se.
Não há provas claras da fuga, mas
o romance de Raquel escolhe, pela imaginação, salvar a todos. (Inclusive os
sonhos de todos nós.)
5) A possibilidade redentora da
Casa de Consertos – e a família concertada
O romance, como a imaginação de
uma criança, está carregado de situações mágicas para solucionar os problemas
cotidianos. Um momento desses é a aparição da Casa de Consertos, onde Raquel
vai levar a “Guarda-chuva” para consertar.
A questão mágica dessa casa é a
sua possibilidade: a família que trabalha consertando tudo é formada por quatro
pessoas, um avô, um pai e mãe e a filha, quase da idade da protagonista. Quando
Raquel chega, eles estão dedicados cada um a uma função: a mãe, em cozinhar, o
pai e o avô, em consertar coisas, e a menina, em estudar. De repente, dá a hora
de almoçar e eles param. Depois, tem um intervalo em que todos dançam e, quando
dá a hora de voltar ao trabalho, cada um, na posição em que caiu, assume a
função mais próxima. Então, a menina vai consertar coisas, o pai vai cozinhar,
a mãe vai consertar e o avô vai estudar.
6) O estudo como uma
possibilidade de ampliação da imaginação
Quando Raquel pergunta por que o
avô de Lorelay ainda está estudando, a resposta é surpreendente para a
protagonista: estudar amplia o mundo.
O mesmo vale para o fato de o pai
estar cozinhando (supostamente é função da mãe) e, por fim, a reunião familiar
onde todos discutem os problemas da família e os caminhos para chegar a uma
solução.
É tudo mágico e revolucionário
para Raquel – e para todos os leitores que, de algum modo, não entendem a
rigidez dessas funções predeterminadas por uma tradição que já não faz mais
sentido.
Conclusão: para um professor de
literatura e de muitos anos, a leitura me apresentou a um novo: o mundo da
literatura infantil (nem eu, nem Borges nos entendíamos muito bem com essa
fração da literatura).
Pareceu-me um belíssimo caminho
para iniciar o exercício de desenvolvimento do imaginário, proporcionado pelo
acesso à literatura – entre outros.
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