24.7.24

Diário de leituras: A bolsa amarela, de Lygia Bojunga


Começando uma caminhada nova (aos 52 anos) no município de Niterói, me vi tendo que “empolgar” uma molecada das turmas de Aceleração do 6º ano. Meu primeiro movimento, aproveitando o período de recesso do meio do ano, foi levá-los à biblioteca da escola e “propor” que todos escolhessem um livro para ler durante o recesso e que, havendo uma apresentação de cinco destaques da leitura, o aluno faria jus a 10 pontos. (Sim, precisamos pensar no ponto como moeda de troca na educação, algo que nos levaria a uma cultura do suborno que, simplificando bastante o problema, acaba com uma geração de adultos que entendem que fazer um curso superior é o mesmo que conseguir o diploma de um curso superior. Enfim... é o que temos para hoje.) Com o tempinho que estou na educação básica, sei que qualquer desafio trará uma baixa adesão, sobretudo se envolver leitura (ato extremamente complexo para uma população toda diagnosticada com déficit de atenção), então propus que, na primeira aula depois do recesso, eu faria uma apresentação modelo (sempre faço isso com as minhas turmas) a fim de que eles tivessem um parâmetro mínimo para se direcionar.

Na biblioteca, o curso (não concluído) de ciência política na Unirio me educou a procurar os livros de sociologia, história, economia etc., entretanto, por já está parado com vários livros com leitura em andamento, e pensar que era a oportunidade para ler algo mais simpático para uma molecada iniciando no mundo da literatura, selecionei meu primeiro Lygia Bojunga, a renomada editora e escritora ganhadora de diversos prêmios e traduzida para diversas línguas. Começamos com “A bolsa amarela”, de 2012, e atualmente na 35ª edição.

Passamos ao trabalho apresentado aos alunos.

Leitura de A bolsa amarela (2012), de Lygia Bojunga

Resumo: o livro é um bonito desenho do poder da imaginação de uma criança, no caso, a pequena Raquel, que utiliza a sua criatividade para preencher os vazios que a relação com os adultos da família acaba criando. Sobretudo as vontades que não podem ser realizadas: a vontade de crescer, a de ser menino e a de ser escritora.

Como essas vontades se justificam e se esvaziam é o caminho subliminar do livro.

1) A imaginação ilimitada da criança Raquel – e a pobreza da imaginação do mundo adulto.

Como a pequena precisa de liberdade, e os adultos não estão prontos a lhe proporcionar, os mecanismos que ela cria para se expressar (para construir um diálogo com o mundo) entram em choque com as regras da “vida real” e “dura” dos adultos, tão cheia de compromissos que beiram à bajulação da tia rica e as divisões bem estabelecidas entre homens e mulheres, adultos e crianças.

2) O empobrecimento da vida mental do adulto

Do tópico anterior, deduz-se uma vida empobrecida, embrutecida, sem espaço para a imaginação e a subversão mesmo do que está claramente diminuindo a vida de todos.

3) A escolha difícil da história do Galo Terrível

A imaginação de Raquel a leva a diversos amigos imaginários e, muito interessante, a um exercício de troca de cartas com eles. Quando as cartas são descobertas, o irmão mais velho não acredita e a repreende. Surgem então os amigos de fábula, no sentido de seres que falam, como o galo Rei, que prefere ser chamado de Afonso, dada a exagerada prepotência de alguém alcunhado de rei, e o galo Terrível, cujo destino o preparou para ser um galo de briga e nunca ter um pensamento que não estivesse ligado à coragem do confronto com outros galos.

A crueldade do pensamento único, imposto de fora para dentro, gera a luta de Raquel e seus amigos para evitar que Terrível, já envelhecido, enfrente a última luta.

4) O dilema da escritora Raquel

Ocorre que Terrível foge e vai enfrentar seu destino e, quando os amigos chegam à praia em que a luta ocorrera, só encontram suas penas na areia. Os amigos falam que Terrível morreu, mas a escritora Raquel propõe um fim em que Terrível consegue fugir da briga para o mar e, daí, salva-se.

Não há provas claras da fuga, mas o romance de Raquel escolhe, pela imaginação, salvar a todos. (Inclusive os sonhos de todos nós.)

5) A possibilidade redentora da Casa de Consertos – e a família concertada

O romance, como a imaginação de uma criança, está carregado de situações mágicas para solucionar os problemas cotidianos. Um momento desses é a aparição da Casa de Consertos, onde Raquel vai levar a “Guarda-chuva” para consertar.

A questão mágica dessa casa é a sua possibilidade: a família que trabalha consertando tudo é formada por quatro pessoas, um avô, um pai e mãe e a filha, quase da idade da protagonista. Quando Raquel chega, eles estão dedicados cada um a uma função: a mãe, em cozinhar, o pai e o avô, em consertar coisas, e a menina, em estudar. De repente, dá a hora de almoçar e eles param. Depois, tem um intervalo em que todos dançam e, quando dá a hora de voltar ao trabalho, cada um, na posição em que caiu, assume a função mais próxima. Então, a menina vai consertar coisas, o pai vai cozinhar, a mãe vai consertar e o avô vai estudar.

6) O estudo como uma possibilidade de ampliação da imaginação

Quando Raquel pergunta por que o avô de Lorelay ainda está estudando, a resposta é surpreendente para a protagonista: estudar amplia o mundo.

O mesmo vale para o fato de o pai estar cozinhando (supostamente é função da mãe) e, por fim, a reunião familiar onde todos discutem os problemas da família e os caminhos para chegar a uma solução.

É tudo mágico e revolucionário para Raquel – e para todos os leitores que, de algum modo, não entendem a rigidez dessas funções predeterminadas por uma tradição que já não faz mais sentido.

Conclusão: para um professor de literatura e de muitos anos, a leitura me apresentou a um novo: o mundo da literatura infantil (nem eu, nem Borges nos entendíamos muito bem com essa fração da literatura).

Pareceu-me um belíssimo caminho para iniciar o exercício de desenvolvimento do imaginário, proporcionado pelo acesso à literatura – entre outros.


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