Muitos já disseram que não
deveríamos ler um livro chato. A questão é que, às vezes, não reconhecemos se a
incompetência é do escritor ou do leitor – ou se é a vida mesmo. Também há as
encruzilhadas nas quais nos metemos e, para sair, é preciso fazer o caminho
todo (“Somos um quando entramos e outro quando saímos). Foi assim que, devendo
a leitura de mais de 10 livros para a Faculdade de Ciência Política, entre eles
o belíssimo (intelectualmente falando) “Mal-estar da pós-modernidade”, do Zygmunt
Bauman, e mais uma dezena de artigos, tropecei com “Os filhos do imperador”, da
estadunidense Claire Messud, e seus mais de 40 exemplares na biblioteca do
Colégio Estadual Matemático Joaquim Gomes de Souza (é um mistério porque a
Biblioteca da Imprensa Oficial do Estado do Rio de Janeiro comprou milhares desse
livro da Nova Fronteira). Era perfeito para o projeto de todos lermos um mesmo
livro e podermos debater sobre ele. (Sim, pensei em Conceição Evaristo, em
Eliana Alves Cruz e em Itamar Vieira Junior, mas estes não estão na Biblioteca
Pública e não existem em quantidade no nosso colégio.)
O livro retrata o império da
futilidade e infantilização que domina a rotina da classe alta estadunidense
(mas poderia ser do mundo todo?) envolvida numa série de problemas (white people problem) que vão da
necessidade de comprar um vestido novo para um grande evento x (o milésimo) e ser
tornar alguém relevante socialmente (sem abrir mão do grand monde das marcas caras que diferenciam vencedores e
derrotados). Enfim, para um professor do ensino médio de escolas públicas do
estado do Rio de Janeiro, o livro é uma reafirmação dos estereótipos (estereótipos?)
que poluem meu imaginário e que me enchem de tédio quando, por algum motivo, me
deparo com a narrativa de suas preocupações: a filhinha de papai que, vivendo à
sombra dele, debate-se entre o desejo e a impossibilidade de superá-lo; os
familiares periféricos que orbitam em volta do grande homem e buscam sua aprovação
(e superação); a mulher rica que, casada com o super-homem, dedica-se a ajudar
crianças em situação de vulnerabilidade; o amigo gay com muito problema
parecido com o dos héteros, mais os do próprio universo, incluindo a
organização do amor entre o desejo libertário e a realidade monogâmica; e, por
fim, mas entre outros, o imperador, esse jornalista aclamado, ganhador de um
montão de prêmios e, na maturidade, entregue ao abismo de receber os aplausos
pelo tamanho que já teve, enquanto, no crime dos crimes (contém ironia), trai a
esposa fiel e dedicada com a amiga da filha.
O livro é minuciosamente
descritivo, o que, para nossos tempos velozes, pode ser um elogio, pois exige disciplina
e dedicação – artigos em falta na economia da atenção –, ou um defeito, pois é
possível que ele seja apenas desinteressante mesmo – e isso em qualquer tempo.
(Mas ainda acho que pode ter a ver com um estilo que, apenas, não me
interessa.) De qualquer forma, é impossível que alguém escreva 478 páginas e
que não nos deixe nada. Vejamos.
O tema que mais me chama a
atenção é o que trata da infantilização dos personagens, à exceção, talvez, de
Annabel, esposa do Murray Thwaite. De fato, a filha Marina Thwaite tem 30 anos
e nenhuma questão resolvida (Aí, Drummond!). É a Barbie tantas vezes
representada e tão comum, com 20 anos, mas, nestes nosso tempos, não rara aos
40. Daniele, sua melhor amiga, da mesma idade, tem projetos estranhos, alguma
realização mediana, mas o que de fato consegue é o caso com o Murray Thwaite –
nesse aspecto, a descrição do corpo decadente de um homem de mais de 50 anos é
cruamente real. Já o outro amigo da tríade, o gay Julius, tem um comportamento
de flaneur pelo mundo, vivendo a
própria tragédia e a dos demais com um ar janota.
A invenção da infância, penso eu,
levou a humanidade a infantilizar a infância e, consequentemente, a
infantilizar a si mesmo. Essa infantilização passa por muitos aspectos e
impregna inclusive a linguagem: hoje, é preciso que o resenhista, o professor,
o amigo, coloque entre parênteses “contém ironia”, ou poderá ser atacado. Esse incapacidade
de incompreensão de uma figura de linguagem empobrece o mundo que, mais
literal, precisa ser também mais descritivo – trazendo de volta algo que já
achei bem cansativo em “Madame Bovary” e em “Os sertões”, mas que gostei
bastante em “Grande Sertão: Veredas” e “Corpo de baile”. Entregues à
superficialidade da linguagem, o mundo é uma máquina fotográfica numa disputa cansativa
por ostentar o sucesso, que sempre tem algo de vazio, que precisa
permanentemente ser enchido, e adiar o inevitável decrepitar de tudo.
Com tudo tão comezinho, apenas
depois da página 400, algo finalmente acontece – e no mundo real: no dia 11 de
setembro de 2001, dois aviões são jogados contra as torres gêmeas do World
Trade Center e sacode as vidas desinteressantes desses ricos e seus satélites: Thwaite
abandona a amante e volta para casa, apesar de que ele estaria em Chicago e de
que todos os voos estarem cancelados por ocasião dos ataques – a esposa Annabel
prefere não perguntar e ficar feliz por ele estar em casa. Um outro personagem,
Frederick Tubb, jovem e fracassado, o que, mesmo para um cético, constitui um
oximoro, decide fingir que morreu nos destroços do desabamento das duas torres.
Não dá certo totalmente, mas ele engana e deixa chorar a todos que precisam.
Nesse sentido, o livro termina
tendo seu valor ao apontar essa futilidade da riqueza (o mundo nunca foi tão rico
e os ricos, porque muitos mais, agora do que, por exemplo, no Império Romano,
nunca foram tão fúteis), esse vazio existencial que, se sempre esteve presente,
parece ter se solidificado nos últimos anos (talvez isso explique a sociedade
sob medicamento que nos tornamos).
***
É possível que esse seja um
estilo de escrita e eu, como não sou um leitor de mulheres brancas
estadunidenses, não tenha conseguido alcançar outros olhares.
Neste sentido, esta primeira
resenha foi escrita sobre o calor (frio) do fim da leitura. Vou agora ler
alguns comentários sobre o livro e ver se encontro outros valores.
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