Seguimos com o misterioso
processo de leitura de livros que furam a minha lista de prioridades – o sonho
de reler meus 10 livros mais importantes segue dormindo em berço duro e sem
mosquiteiro. Desta vez, porque combinei com os alunos do 2º ano para
aproveitarmos a oportunidade de termos, na biblioteca do colégio, mais de 40
exemplares de um mesmo livro, dediquei (dedicamo-nos?) a ler o intenso
“Setembros de Shiraz”, de Dalia Sofer – depois do insosso “Os filhos do
imperador”, da estadunidense Claire Messud.
O Wikipedia (sim, ele mesmo) me
informa que Dalia Sofer nasceu numa família judia em Terã, durante a revolução
iraniana e, atualmente, é cidadã estadunidense. Além deste livro, publicou, em
2020, “Man of My Time”, sem tradução para o português – ainda. A história de
“Setembros de Shiraz” se inspira na vida do pai de Dalia, preso e torturado
pelo regime do Aiatolá Komeini, que derrubara o Xá Mohammad Reza Pahlavi. Com a
direção de Wayne Blair, o livro se transformou em filme em 2015 e contou com
Adrien Brody (óscar de melhor ator em “O pianista”, 2002), Salma Hayek (“Frida”,
2002) e Ariana Molkara, como Shirin.
Isaac Amin é um ourives muito bem
sucedido e amigo do Xá deposto pela revolução. Esta amizade o leva à prisão sob
o argumento de infiltrado do antigo regime, ou de pregar contra as leis do
Islã, por, entre outras acusações, ter uma vida de luxo e sofisticação. Como
num cenário kafkaniano, as pessoas são desaparecidas com os pretextos mais
variadas, inclusive pretexto nenhum. Num cenário que lembra em muito as falsas
denúncias dos tempos de guerra, quando o caluniador pretende ficar com os bens
do denunciado, Amin passa quase um ano na cadeia, sendo interrogado e
torturado, sem que, no fim, seja apresentada qualquer justificativa para a sua
prisão – a não ser o fato de ser rico num país de miseráveis. (Bem, precisamos
falar sobre isso.)
De fato, o argumento da
exploração do pobre é utilizado diversas vezes, embora o regime de Komeini
tenha se apresentado como uma alternativa ao capitalismo, à exploração inglesa,
e ao comunismo, à exploração soviética – inclusive ser comunista era motivo de
prisão, tortura e execução. A conversa de Farnaz, esposa de Amin, com Habibeh, empregada
da casa, quando voltam da cadeia onde foram buscar informações, exemplifica o
uso do debate da desigualdade e da exploração para justificar a ação dos
revolucionários. Falando do filho, Morteza, que entrara para a Guarda
Revolucionária, Habibeh argumenta:
_ Ele se pergunta por que
algumas pessoas vivem como reis e o resto como ratos. E por que são os ricos,
apaixonados pela Europa e pelo Ocidente, que ditam o que o país inteiro deve
vestir, falar, como deve viver? E se nós gostamos dos nossos chadores e do
nosso Corão? E se queremos que os nossos mulás nos governem e não aquele
santo... como é o nome dele? – Ela bate o dedo no painel do carro, tentando
lembrar o nome. _ Morteza me disse que ele é venerado na Europa... Já sei!
Saint Laurent, ou alguma coisa assim....
_ Yves Saint Laurent? –
Farnaz dá risada. _ Ele não é santo, Habibeh. É estilista. Isso é só o nome
dele.
Habibeh fica rubra. Vira
para a janela.
_
Está vendo, Farnaz-khanum, a senhora me humilha sempre que pode.” (p. 72)
O argumento que esclarece um
raciocínio equivocado, ao invés de oferecer luz ao diálogo e colocar a razão e
a verdade como mediadoras das decisões, é apontado por Habibeh como sinal da
arrogância dos patrões diante da ignorância dos empregados. Essa manipulação do
argumento da desigualdade é utilizada para alimentar o ódio entre as classes
sociais de modo a levar os pobres, a grande maioria do país, a apoiarem os
aiatolás. O truque é antigo: como uma base de argumentação sólida, a
desigualdade realmente é uma covardia, fica fácil arregimentar a população para
uma luta que, no fim, consistirá numa troca das elites e a manutenção do
exército de miseráveis na mesma condição em que se encontravam antes da
revolução – senão pior. A descrição da juventude e o estado de pobreza dos
soldados revolucionários já denuncia que pouca coisa vai mudar em termos de
qualidade de vida para a maioria.
No fim das contas, sem nada que o
desabone, Isaac só consegue ser libertado quando oferece toda a fortuna que
tinha guardado no banco. A revolução, qualquer revolução, precisa de dinheiro. Quando
retorna à sua firma, descobre que fora saqueada por seus antigos funcionários,
entre eles, Morteza.
A transformação da cidade é
duramente sintetizada em: “Os cartazes de cinema e anúncios de xampu foram substituídos
por extensos murais de clérigos. As ruas que tinham nomes de reis agora
manifestam que a revolução é patrocinadora. E homens e mulheres um dia bem vestidos transformaram-se em sombras
barbadas e véus negros.” (grifo meu, p. 10) Se tudo vai mal num país, as
coisas vão ainda pior para as mulheres. A irmã de Amin, Shahla, foi atacada com
um líquido estranho no rosto porque, ao voltar do salão (sim, ela se recusara a
abrir mão de coisas importantes para ela), por ter feito o cabelo, deixara o
lenço, que deveria lhe cobrir o rosto (é a lei do Aiatolá), bem solto. Farnaz
pergunta ao cunhado, Keyvan: “Era ácido?” (p. 195)
Embora Keyvan não confirme, a
simples possiblidade de alguém ser atacado com ácido apenas por deixar o rosto
descoberto é absurda demais para um leitor brasileiro. O absurdo dá vários
saltos para se materializar, por exemplo, quando, chamado pelo carcereiro para
se apresentar ao interrogador, Amim pergunta que horas são e o guarda responde:
“Irmão, você precisa aprender a não pensar no tempo. Não significa nada aqui.”
(p. 21)
Por fim, destaco três outros
pontos que se destacaram dessa primeira leitura.
Shirin
Shirin é a filha caçula de Amin e
Farnaz. Está na escola e, com seus nove anos, precisa entender a transformação
do mundo que prendeu seu pai e, colocou sobre sua família, um olhar de
desconfiança. Ainda que o romance tenha várias descrições poéticas, é, nas
passagens em que Shirin busca compreender o que está acontecendo, que elas alcançam
seus momentos mais belos – e duros. Por exemplo: “a ausência é prima da morte”
(p. 101)
Duas passagens permanecem comigo.
Quando Farnaz, a mãe, vai procurar o marido pelas cadeias de Shiraz, termina
não conseguindo chegar a tempo para pegar Shirin na escola. A menina procura
ajuda com o porteiro Jamshid, a quem ofereceu seu lanche: um sanduíche e uma
banana:
_Obrigado – ele diz. _Mas
uma menina na sua idade devia comer. Quantos anos você tem? Nove? Dez?
_Nove.
_Na verdade você nem é tão
jovem. Nove anos é idade suficiente para casar. A minha mulher tinha só treze
quando nos casamos. (p. 48)
No capítulo 35, Shirin, que tem passado muito tempo na enfermaria da escola, está na sala de aula e a professora pergunta à turma quem seria voluntária para a revolução. De quarenta alunas, duas levantam a mão. Sem tanta convicção, a amiga de Shirin, Leila, filha de um homem que limpava os defuntos e que, com a revolução, virara soldado, também levanta a mão. Quando a aula termina, Shirin pergunta à amiga se ela seria voluntária realmente. O diálogo traz toda a dimensão da tragédia:
_Seria. Se minha mãe
deixasse. Meu pai já me disse que não proibiria. Mas minha mãe, ela é teimosa.
_Minha mãe diz que estão
usando as crianças para descobrir as minas.
_E daí? Alguém tem que
desarmar as minas. E é melhor poupar os adultos para o verdadeiro combate. Sabe,
eles dão uma chave só para você quando é voluntária.
_Uma chave?
_A chave do paraíso. Porque se
você morrer em combate será uma mártir e irá automaticamente para o paraíso.
_Se você vai para o paraíso,
Deus não vai abrir a porta para você? Para que precisa da chave?
_Eu não sei! – disse Leila,
irritada. _Você e eu não devemos mesmo ficar conversando. (p. 205-206)
A educação para construir em crianças o desejo de
se tornar mártir, o fetiche da chave que abre as portas do paraíso – um paraíso
que tem portas fechadas já seria um paradoxo interessantíssimo – e o resultado:
crianças dispostas a morrer para que adultos possam efetivamente combater.
O sistema é mais cruel: as duas crianças que levantaram a mão espontaneamente ficaram livres do dever de casa.
(Continua...)
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