17.6.23

Diário de leituras: Setembros de Shiraz, de Dalia Sofer

 

Seguimos com o misterioso processo de leitura de livros que furam a minha lista de prioridades – o sonho de reler meus 10 livros mais importantes segue dormindo em berço duro e sem mosquiteiro. Desta vez, porque combinei com os alunos do 2º ano para aproveitarmos a oportunidade de termos, na biblioteca do colégio, mais de 40 exemplares de um mesmo livro, dediquei (dedicamo-nos?) a ler o intenso “Setembros de Shiraz”, de Dalia Sofer – depois do insosso “Os filhos do imperador”, da estadunidense Claire Messud.

O Wikipedia (sim, ele mesmo) me informa que Dalia Sofer nasceu numa família judia em Terã, durante a revolução iraniana e, atualmente, é cidadã estadunidense. Além deste livro, publicou, em 2020, “Man of My Time”, sem tradução para o português – ainda. A história de “Setembros de Shiraz” se inspira na vida do pai de Dalia, preso e torturado pelo regime do Aiatolá Komeini, que derrubara o Xá Mohammad Reza Pahlavi. Com a direção de Wayne Blair, o livro se transformou em filme em 2015 e contou com Adrien Brody (óscar de melhor ator em “O pianista”, 2002), Salma Hayek (“Frida”, 2002) e Ariana Molkara, como Shirin.

Isaac Amin é um ourives muito bem sucedido e amigo do Xá deposto pela revolução. Esta amizade o leva à prisão sob o argumento de infiltrado do antigo regime, ou de pregar contra as leis do Islã, por, entre outras acusações, ter uma vida de luxo e sofisticação. Como num cenário kafkaniano, as pessoas são desaparecidas com os pretextos mais variadas, inclusive pretexto nenhum. Num cenário que lembra em muito as falsas denúncias dos tempos de guerra, quando o caluniador pretende ficar com os bens do denunciado, Amin passa quase um ano na cadeia, sendo interrogado e torturado, sem que, no fim, seja apresentada qualquer justificativa para a sua prisão – a não ser o fato de ser rico num país de miseráveis. (Bem, precisamos falar sobre isso.)

De fato, o argumento da exploração do pobre é utilizado diversas vezes, embora o regime de Komeini tenha se apresentado como uma alternativa ao capitalismo, à exploração inglesa, e ao comunismo, à exploração soviética – inclusive ser comunista era motivo de prisão, tortura e execução. A conversa de Farnaz, esposa de Amin, com Habibeh, empregada da casa, quando voltam da cadeia onde foram buscar informações, exemplifica o uso do debate da desigualdade e da exploração para justificar a ação dos revolucionários. Falando do filho, Morteza, que entrara para a Guarda Revolucionária, Habibeh argumenta:

_ Ele se pergunta por que algumas pessoas vivem como reis e o resto como ratos. E por que são os ricos, apaixonados pela Europa e pelo Ocidente, que ditam o que o país inteiro deve vestir, falar, como deve viver? E se nós gostamos dos nossos chadores e do nosso Corão? E se queremos que os nossos mulás nos governem e não aquele santo... como é o nome dele? – Ela bate o dedo no painel do carro, tentando lembrar o nome. _ Morteza me disse que ele é venerado na Europa... Já sei! Saint Laurent, ou alguma coisa assim....

_ Yves Saint Laurent? – Farnaz dá risada. _ Ele não é santo, Habibeh. É estilista. Isso é só o nome dele.

Habibeh fica rubra. Vira para a janela.

_ Está vendo, Farnaz-khanum, a senhora me humilha sempre que pode.” (p. 72)

O argumento que esclarece um raciocínio equivocado, ao invés de oferecer luz ao diálogo e colocar a razão e a verdade como mediadoras das decisões, é apontado por Habibeh como sinal da arrogância dos patrões diante da ignorância dos empregados. Essa manipulação do argumento da desigualdade é utilizada para alimentar o ódio entre as classes sociais de modo a levar os pobres, a grande maioria do país, a apoiarem os aiatolás. O truque é antigo: como uma base de argumentação sólida, a desigualdade realmente é uma covardia, fica fácil arregimentar a população para uma luta que, no fim, consistirá numa troca das elites e a manutenção do exército de miseráveis na mesma condição em que se encontravam antes da revolução – senão pior. A descrição da juventude e o estado de pobreza dos soldados revolucionários já denuncia que pouca coisa vai mudar em termos de qualidade de vida para a maioria.

No fim das contas, sem nada que o desabone, Isaac só consegue ser libertado quando oferece toda a fortuna que tinha guardado no banco. A revolução, qualquer revolução, precisa de dinheiro. Quando retorna à sua firma, descobre que fora saqueada por seus antigos funcionários, entre eles, Morteza.

A transformação da cidade é duramente sintetizada em: “Os cartazes de cinema e anúncios de xampu foram substituídos por extensos murais de clérigos. As ruas que tinham nomes de reis agora manifestam que a revolução é patrocinadora. E homens e mulheres um dia bem vestidos transformaram-se em sombras barbadas e véus negros.” (grifo meu, p. 10) Se tudo vai mal num país, as coisas vão ainda pior para as mulheres. A irmã de Amin, Shahla, foi atacada com um líquido estranho no rosto porque, ao voltar do salão (sim, ela se recusara a abrir mão de coisas importantes para ela), por ter feito o cabelo, deixara o lenço, que deveria lhe cobrir o rosto (é a lei do Aiatolá), bem solto. Farnaz pergunta ao cunhado, Keyvan: “Era ácido?” (p. 195)

Embora Keyvan não confirme, a simples possiblidade de alguém ser atacado com ácido apenas por deixar o rosto descoberto é absurda demais para um leitor brasileiro. O absurdo dá vários saltos para se materializar, por exemplo, quando, chamado pelo carcereiro para se apresentar ao interrogador, Amim pergunta que horas são e o guarda responde: “Irmão, você precisa aprender a não pensar no tempo. Não significa nada aqui.” (p. 21)

Por fim, destaco três outros pontos que se destacaram dessa primeira leitura.

Shirin

Shirin é a filha caçula de Amin e Farnaz. Está na escola e, com seus nove anos, precisa entender a transformação do mundo que prendeu seu pai e, colocou sobre sua família, um olhar de desconfiança. Ainda que o romance tenha várias descrições poéticas, é, nas passagens em que Shirin busca compreender o que está acontecendo, que elas alcançam seus momentos mais belos – e duros. Por exemplo: “a ausência é prima da morte” (p. 101)

Duas passagens permanecem comigo. Quando Farnaz, a mãe, vai procurar o marido pelas cadeias de Shiraz, termina não conseguindo chegar a tempo para pegar Shirin na escola. A menina procura ajuda com o porteiro Jamshid, a quem ofereceu seu lanche: um sanduíche e uma banana:

_Obrigado – ele diz. _Mas uma menina na sua idade devia comer. Quantos anos você tem? Nove? Dez?

_Nove.

_Na verdade você nem é tão jovem. Nove anos é idade suficiente para casar. A minha mulher tinha só treze quando nos casamos. (p. 48)

No capítulo 35, Shirin, que tem passado muito tempo na enfermaria da escola, está na sala de aula e a professora pergunta à turma quem seria voluntária para a revolução. De quarenta alunas, duas levantam a mão. Sem tanta convicção, a amiga de Shirin, Leila, filha de um homem que limpava os defuntos e que, com a revolução, virara soldado, também levanta a mão. Quando a aula termina, Shirin pergunta à amiga se ela seria voluntária realmente. O diálogo traz toda a dimensão da tragédia:

_Seria. Se minha mãe deixasse. Meu pai já me disse que não proibiria. Mas minha mãe, ela é teimosa.

_Minha mãe diz que estão usando as crianças para descobrir as minas.

_E daí? Alguém tem que desarmar as minas. E é melhor poupar os adultos para o verdadeiro combate. Sabe, eles dão uma chave só para você quando é voluntária.

_Uma chave?

_A chave do paraíso. Porque se você morrer em combate será uma mártir e irá automaticamente para o paraíso.

_Se você vai para o paraíso, Deus não vai abrir a porta para você? Para que precisa da chave?

_Eu não sei! – disse Leila, irritada. _Você e eu não devemos mesmo ficar conversando. (p. 205-206)

 

A educação para construir em crianças o desejo de se tornar mártir, o fetiche da chave que abre as portas do paraíso – um paraíso que tem portas fechadas já seria um paradoxo interessantíssimo – e o resultado: crianças dispostas a morrer para que adultos possam efetivamente combater.

O sistema é mais cruel: as duas crianças que levantaram a mão espontaneamente ficaram livres do dever de casa.

(Continua...)

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