_ É como você diz: só mais 24 h.
Sim. Eu digo isso. E não é por conta do alcoolismo
hereditário.
_ É como você diz: nós somos cuidadores das
crianças que o estado rejeita.
Sim. Eu tenho falado demais. O pior é essa
sensação de acerto, que convive com o desejo de estar errado. O resto são exceções - por sorte, uma maioria
de exceções cuja vitória, no limiar de tudo, significa chegar aos 30 anos neste desmundo. Lembro do
"Morte e vida severina" e aquele povo que tem 30 mas parece 60, cujo
futuro já é tomado por um passado infinito desde os 10 anos. Cujo futuro é sempre maldição dos pais - e dos pais dos pais...
Ontem, Andrezza Leticia, que inferniza minhas
aulas, começou a chorar do nada. Disse que estava com saudade do pai, que era
padrasto, que morrera de câncer três anos atrás. Também sentia falta do irmão,
que foi morto pela polícia. Era ele que brigava com ela para que estudasse, era
ele que pagava os cursinhos que ela pôde fazer. Do pai, não diz nada, mas eu já
sei: foi morto pela polícia.
Henrique escuta de cabeça baixa. Olhando a baía de
Botafogo, temos essa estranha sensação de que perdemos. Perdemos diariamente e
lembro do encontro com padre Júlio, da live que fizemos. (Não imaginem o padre, velhinho, fofo, não imaginem o professor, envelhecendo, fofo, mas acreditem que seguem tentando.)
_ Eles nem se dão conta. Nunca se dão conta...
... De nada.
Vivem também num eterno presente, vivem também
para sobreviver a estas próximas 24 h. Se tudo isso.
A Ana me disse que o pai do Vigário batia nele com
chicote de cavalo. A Adelenize perdeu o marido numa ação da polícia. Estava deitada com ele quando a polícia entrou. Ela tinha treze anos.
_ Essas histórias nem são lógicas. Que ano nós estamos? 1850!?
Por aí.
_ O pior é que eles não tiveram nem chances! Não
tiveram nem a oportunidade de disputar...
Agora sou eu que procuro o chão.
_ Estão como à margem.
Estão como à margem da margem da margem... Lembro
da terceira margem de Guimarães Rosa. Henrique não entende a referência. Eu
também não.
Estamos como à margem da margem da margem.
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