21.6.23

Cartas à educação: à margem da margem da margem.



Saímos para tomar um café perto da escola. Henrique é hipertenso e está com sobrepeso. Vamos tentando fugir do nosso assunto, mas ele nos assalta.

_ É como você diz: só mais 24 h.

Sim. Eu digo isso. E não é por conta do alcoolismo hereditário.

_ É como você diz: nós somos cuidadores das crianças que o estado rejeita.

Sim. Eu tenho falado demais. O pior é essa sensação de acerto, que convive com o desejo de estar errado. O resto são exceções - por sorte, uma maioria de exceções cuja vitória, no limiar de tudo, significa chegar aos 30 anos neste desmundo. Lembro do "Morte e vida severina" e aquele povo que tem 30 mas parece 60, cujo futuro já é tomado por um passado infinito desde os 10 anos. Cujo futuro é sempre maldição dos pais - e dos pais dos pais...

Ontem, Andrezza Leticia, que inferniza minhas aulas, começou a chorar do nada. Disse que estava com saudade do pai, que era padrasto, que morrera de câncer três anos atrás. Também sentia falta do irmão, que foi morto pela polícia. Era ele que brigava com ela para que estudasse, era ele que pagava os cursinhos que ela pôde fazer. Do pai, não diz nada, mas eu já sei: foi morto pela polícia.

Henrique escuta de cabeça baixa. Olhando a baía de Botafogo, temos essa estranha sensação de que perdemos. Perdemos diariamente e lembro do encontro com padre Júlio, da live que fizemos. (Não imaginem o padre, velhinho, fofo, não imaginem o professor, envelhecendo, fofo, mas acreditem que seguem tentando.)

_ Eles nem se dão conta. Nunca se dão conta...

... De nada.

Vivem também num eterno presente, vivem também para sobreviver a estas próximas 24 h. Se tudo isso.

A Ana me disse que o pai do Vigário batia nele com chicote de cavalo. A Adelenize perdeu o marido numa ação da polícia. Estava deitada com ele quando a polícia entrou. Ela tinha treze anos.

_ Essas histórias nem são lógicas. Que ano nós estamos? 1850!?

Por aí.

_ O pior é que eles não tiveram nem chances! Não tiveram nem a oportunidade de disputar...

Agora sou eu que procuro o chão.

_ Estão como à margem.

Estão como à margem da margem da margem... Lembro da terceira margem de Guimarães Rosa. Henrique não entende a referência. Eu também não.

Estamos como à margem da margem da margem.

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