29.7.23

Diário de leitura: Tudo é rio, de Carla Madeira

 


A fila das leituras é furada novamente (e o livro do Haddad e o da Letícia Cesarino, outras praias, estão reclamando atenção). Desta vez, é Teca que me sugere o livro de Carla Madeira que, publicado em 2015, atualmente, é unanimidade em termos de crítica. Relançado em 2021, ficou em 2º lugar entre os mais vendidos, atrás apenas do vencedor dos prêmios Jabuti e Oceanos, “Torto arado”, de Itamar Vieira Junior, já vendeu mais de 100 mil cópias. A escritora Carla Madeira foi entrevistada no último “Roda Viva” de março deste ano.

Um romance que começa com a frase de uma única palavra, “Puta.”, e termina com “Deus estava de volta.”, já diz um arco de sentimentos que vai abarcar. Um romance de um Perdão gigantesco e um twist carpado de fechamento, quente em seus múltiplos sentidos, inclusive no sentido do infinito de Vinicius, que permite ao leitor uma quantidade de reflexões e emoções que vão do ódio mais justo ao perdão mais divino, justamente porque – aprendi agora – perdoar é perdoar o imperdoável, o resto é desculpar, deixar pra lá. Mineira, em “Tudo é rio”, a multitalentosa Carla Madeira responde também por uma tradição de escritores ourives, que, mais do que contar uma história, lapidam-na frase a frase, como se cada frase fosse já uma outra história – lembro rapidamente de Carolina de Jesus, Conceição Evaristo, Adélia Prado e, claro, de Guimarães Rosa. É por isso que surgem pérolas como “os olhos fechados num escuro quente” (p. 87), ou, “o amor, quando nasce forte, tem pressa de ser eterno” (p. 88) e a bela lição que a linda Aurora dá à sua filha Dalva – e o jogo dos nomes está nítido:

Eu e Antônio estamos casados há vinte e seis anos. Nem sempre é bom, nem sempre é ruim. Desconheço a balança que mede isso. É o que é, aceito, rejeito, mas não escolho mais tirar de mim esse amor entranhado, pertence a lugares em mim que não mando mais. Não fico tomando conta, podia ser assim, podia ser assado, medindo com régua o que falta. Não quero viver sem Antônio, me caso todos os dias com ele, acordo e caso, depois faço o café. Tem dias que ele tá chato de doer, largo pra lá, vai ser chato longe de mim e pronto. Ele melhora sozinho, depois piora e torna a melhorar, e a gente vai assim tomando distância e diminuindo distância. Caminhando. (p. 102)

Seria necessário transcrever boa parte do livro para fazer jus a todas as frases que saltam do texto e permanecem pulando na cabeça do leitor. Entretanto, mais três fragmentos impõem uma reflexão: “O passado é eterno” (p. 157), “Os assuntos banais tentavam encobrir o mal-estar que pesava sobre todos.” (p. 99) e “O esquecimento começava a jogar seu manto.” (p. 99). A estratégia humana para seguir em frente é mudar de assunto, levantar outros temas, desviar os olhos da memória. Mudar de assunto é permitir que o esquecimento escolha outras lembranças. Porém, paradoxalmente, o passado permanece e exige que as partes se encontrem para reconstruir algo muito parecido com o todo. O que os outros assuntos oferecem é tempo para que o diálogo se imponha e permita o reencontro das vozes num tempo-espaço mercúrio-cromo. O livro fala de coisas que boa parte da humanidade não é capaz e reconhecer a violência dessa impotência é, talvez, uma forma de aperfeiçoar a humanidade em nós.

Na entrevista, embora a autora assuma ter tentado fugir do dilema das Marias, o antagonismo entre as personagens principais é patente – já a partir dos nomes das protagonistas: a mãe de Jesus, que está em Dalva, filha da Aurora, e a Madalena, que está em Lucy (de Lúcifer?), aquela que gosta do pecado – território tão de exclusividade masculina. Como cabe a toda protagonista, é Lucy a agente do caos que dá o rebuliço da narrativa. Lucy é linda, a puta perfeita, que nunca foi rejeitada – pelo contrário, que rejeitou – até conhecer Venâncio, a casca de homem, marido de Dalva, que culpado por um crime impensável, é arrastado pelo próprio corpo ao puteiro de Manu, é arrastado para a “disputaria”.

Como todo bom livro, “Tudo é rio” é sobre tudo, sobre o que nos é mais essencial, sobre o que fizemos com aquilo que fizeram da gente, sobre perdão, luto, violência doméstica, ciúme, alegria, prostituição e gozo feminina. É sobre o fato de que “Ninguém monta na vida.” (p. 173), já que ela é rio e, como todo rio, tem seus dias de lua.

Por fim, dois comentários para enriquecer o vazio – a obra já está pronta, tudo agora é citação.

Há um salto qualitativo na literatura que divide as narrativas dos mocinhos santos e dos vilões totais – não vou tentar datá-lo, pois me falta estofo e as lições da Academia sempre me pareceram reducionistas, embora necessárias. A partir de então, uma parte das escritoras e dos escritores trabalhou para diluir a exatidão desses estereótipos emprestando capas do diabo ao mocinho e gotas de anjo aos vilões. Talvez por influência freudiana – inconsciente portanto, o grande vilão desapareceu e levou consigo o herói pleno, o que termina por nos tirar de um esquema para nos colocar em outro.

Fico feliz porque, na leitura que fiz, se Venâncio é um ser em trânsito, um anjo onde dorme um demônio, se Lucy se converte no decorrer da trama narrativa, Dalva, Aurora e Francisca de Assis, que “tinha piedade até de boneca estragada” (p. 162), são seres de luz. E acho bom que eles sejam assim porque, sem uma leitura infantilizada da vida (estes últimos oito anos devem ter nos ensinado muita coisa), se todos somos capazes do mal (“O pior de nós tem seus encantos.” – p. 128), alguns são capazes de cair em todas as tentações (“Posso resistir a qualquer coisa, menos à tentação.” – Oscar Wilde), e outros se esconderão em suas próprias cavernas para evitar alimentar seus demônios.

Nessa busca por uma verossimilhança (seja lá o que for isso), uma parte da crítica vai atacar a superpopulação de boas frases do romance, que é, ao lado das cenas de violência (“deixa a raiva ter chance de não virar desgraça” – p. 143), um dos aspectos sublimes do livro e da história da literatura. Evidentemente que não se trata de um catálogo de aforismos para enfeitar o mercado de camisas. As frases respondem ao contexto, e à literatura do texto, por isso Aurora se eterniza, talvez, mais do que Dalva, uma vez que, mãe, cabe a ela o repertorio das experiências que vai orientar a filha. É Dalva que ensina a Venâncio: “O amor é alegre”.

E a gente acredita.

***

O capítulo 27, em que Lucy descobre que sua vitória é derrota, é qualquer coisa de cinema.

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