Desde 2018, quando li “O fantasma
de Luis Buñuel” (2004), nunca mais parei de ler os livros de Maria José
Silveira, esta escritora delicada, generosa e engajada – nem os da Maria
Valéria Rezende; ambas fundamentais para pensar a literatura contemporânea e dar
uma base para construir uma linha reflexiva na minha tese “Mais vozes para o
coro: Alguma literatura de pós-ditadura em Chile, Argentina e Brasil”,
defendida dias antes do início da pandemia. Nas aulas de Ciência Política na
Unirio, conheci “A identidade cultural na pós-modernidade” (1992), do genial (é
essa palavra mesmo que eu quero usar) teórico cultural e sociólogo
britânico-jamaicano Stuart Hall. Hall fala de cinco descentramentos que
fissuram esse sujeito cartesiano; o quinto deles é oriundo dos movimentos
feministas. É disso, também, que estamos falando quando falamos dos livros
dessas duas escritoras – e de outras tantas e tão importantes quanto Conceição
Evaristo e Eliana Alves Cruz.
O “Farejador de águas”, publicado
este ano, leva novamente a autora a nos contar estórias e histórias do Planalto
Central e a nos apresentar a Zé Minino e Maria Branca, dois personagens que
sobrevivem por muitos anos acompanhando a própria história do país, desde a
Coluna Prestes, passando pela ditadura militar, até o início do século XX – e a
sojificação da agricultura nacional na era do “Agro é tudo”, agro mata tudo. Tudo
isso, entremeado pelas narrativas de sobrevivência com a esperança sempre
adiada de um país mais justo e diálogos, pelo menos sentidos em mim, com a
nossa tradição literatura, desde o chamado do rio, que me levou ao “A terceira
margem”, de Guimarães Rosa, à própria presença de Brasília, como em “As margens
da alegria”, também de Guimarães Rosa, e da trilogia ainda não completa de
Milton Hatoum, “O lugar mais sombrio”, além, claro, da própria Maria José e seu
“O fantasma de Luis Buñuel” e do belo e duríssimo “Guerra no coração do cerrado”.
Outro aspecto, ligado ao agro é tudo, é as fazendas “comedoras de terras”, que
me lembraram imediatamente o latifundiário Paulo Honório, de “São Bernardo”, de
Gracialiano Ramos. O movimento é o mesmo, na ficção e na realidade:
_O povo só tá
falando disso. Ele manda cercar terra dos outros com arame farpado. Da noite
pro dia, arrasta os arames farpados da cerca, e a capangada diz que o pedaço é
dele. Ô gente à toa. Qualquer hora vai quer pegar da nossa. Mas só se for por
sobre meu corpo morto. (p. 82)
O movimento é internacional e
começou no século XVII na Inglaterra, mas, como somos atrasados, continuamo-lo
ainda em 2023. Em “Redoble por Rancas”, o peruano Manoel Scorza conta a mesma
história torta e escreve o primeiro capítulo mais impressionante que eu li
nesta vida (tem uma resenha aqui sobre este livro também).
O livro de Maria José, como de
costume, é maior do que qualquer resenha. Suas histórias vão encostar no
Brasil, mas também nas famílias humildes que crescem e cujos filhos “espalham
ramas” pelo mundo. Tem a filha Divina que, desde pequena, traz uma vocação
religiosa, que não encontra eco na formação mundana dos pais, tem Donato, que
foge de uma perseguição e vai parar nos Estaites e, de lá, na Colômbia. A
família é grande, que os tempos eram outros. Para não encompridar demais estes
blablablás, vou destacar três pontos que me ficaram comigo.
Zé Minino e Maria Branca
Alguém encontrou em “A mãe da mãe
da sua mãe e suas filhas”, outro bom livro da Maria José, um parentesco com os “Cem
anos de solidão”, do Gabriel Garcia Marques. Confesso que o casal protagonista
de “Farejador de águas” me deixou mais perto de José Arcadio Buendía e Úrsula
Iguarán, com a ressalva de que, embora tenha vivido quase 100 anos, os nomes de
Zé Minino e Maria Branca não se desdobram (e continuam) nos filhos. Além disso,
enquanto poderosas aventuras vão até a Macondo dos Buendía, é Zé Minino que,
sentindo o chamado do rio vida, se oferece, desde pequeno, para estar no palco
dos acontecimentos nacionais e, assim, conhece Maria Branca que, a princípio,
fora empurrada para estar no mesmo lugar – a estória de sua entrada para a Coluna
é de apertar o coração (mas é verdade que apertar o coração é coisa comum
durante a leitura).
São, portanto, esses dois
personagens que terminam contando a história do Brasil a contrapelo: se
encontram na Coluna Prestes que passara perto do lugarejo em que moravam. É
nela que aprendem a ler e a contar (o que, para o Brasil da década de 1930, é
um privilégio). A história da Coluna é também a história das verdades e
mentiras, selecionadas conforme o caso, à disposição dos donos do poder de
todos os tempos. Na caminhada com a Coluna, nas pequenas cidades por onde
passavam, impressionavam-se “com a diferença entre as cadeias e as escolas,
que, em muitas cidades, nem sequer existiam. As cadeias eram prédios sólidos,
enquanto as escolas, se escola houvesse, estavam em estado lamentável” (p. 26).
Quando a Coluna é dispersa e sua
liderança exilada, Zé Minino e Maria Branca voltam para a terra dele e começam
a própria história. De tempos em tempos, Zé Minino vai onde tem história –
Maria Branca, sobrevivente de um ataque à Coluna, ficou deficiente dos pés e não
pode acompanhar o marido, ficando para cuidar da casa e dos filhos. Zé sempre
volta. Mesmo quando Maria já não está.
“Se tu crê em Deus, agradeça; se
num crê, agradeça também, que uma alma agradecida faz bem pra natureza.” (p.
31) – lhe diz o amigo João Miliguento ainda nos tempos da Coluna.
O cerrado
O “Farejador...” é uma literatura
que acerta o seu tempo e nos apresenta temas que não estão no diário das
pessoas e das cidades do sul-sudeste maravilha – se é que estão em algum lugar,
além de ali onde dói: a destruição do cerrado.
O filho Umberto, gêmeo de
Doroteia, vai estudar na faculdade que o pai e o irmão Nestor ajudaram a
construir: a UnB. A fala dele explica ao pai o tamanho da desgraça:
Estão matando
nosso Cerrado, pai. Extinguindo mesmo. Falam muito da Amazônia, da Mata
Atlântica, mas não falam do Cerrado. Não sabem que essas árvores retorcidas,
baixinhas, que alguns até acham feias, elas são das mais antigas do planeta. Têm milhares de anos e aprenderam a crescer
suas raízes pra baixo, pra dentro da terra, e assim levam a água para os
aquíferos, que são como depósitos lá embaixo, que por sua vez vão levando água
pra boa parte deste país. (p. 205)
Umberto cita textualmente o cientista Altair Sales Barbosa (p.
206), cuja voz tem tentando despertar a sociedade brasileira do coma que a
acomete no que diz respeito à defesa do Cerrado. Umberto, com um tom
entristecido, de quem luta pelo e se despede do lugar em que, com a irmã, cresceu
livre:
Ele explica
que ainda não temos tecnologia para fazer mudas dessas plantas. Uma pequena
plantinha daqui tem raízes que a gente não vê, mas são espetaculares pra reter
a água da chuva e dar de beber a diversos ambientes. É algo que não se consegue
reproduzir em viveiro. Aquela canela-de-ema ali, por exemplo, só chega a se
tornar adulta, como se diz, com mil anos. (p. 207)
Na internet, em 16 de maio de
2017, o cientista deu uma conferência para o Instituto Humanitas Unisinos –
disponível no YouTube. No dia 4 de agosto, o podcast O Assunto, comandado pela
jornalista Natuza Nery, dedicou seu programa ao tema: “Cerrado – como salvar o
bioma do desmatamento”.
Não importa quem veio primeiro, importa que essa caixa de ressonância interfira no país a favor do país – e do mundo.
Doroteia
Doroteia é a irmã gêmea de Umberto.
Igual ao irmão, vivia pela grutas e terras do Cerrado e, igual ao irmão, seu
destino era a universidade e, depois, trabalhar para proteger o bioma. Uma tragédia
corta seus sonhos e, assim, a afasta do mundo – ao qual, só depois de muito
tempo, ela consegue retornar. Doroteia representa, assim, aqueles que, feridos,
acabam por fazer da ferida o centro da sua vida, acabam se condenando a reviver
a própria (“A dor é de quem tem/ É meu troféu é o que restou / É o que me
aquece sem me dar calor).
Doroteia é uma personagem linda e
termina por representar todo um povo que, sofrido, marcado, precisa superar a
dor e tocar a vida. Se ela, por conta do apoio da família, teve tempo para
superar de alguma forma o trauma, ela também representa àqueles que estiveram
nessa encruzilhada onde a escolha termina sendo pessoal – e depende muito do
que se construiu por dentro, e dos sinais que chegam de fora. Doroteia, assim,
representa muita gente que eu conheci e cuja história, a começar pela
escravidão e passando pela ditadura, eu conheci. Doroteia entende que seu
sofrimento é uma homenagem tardia, e indevida, evidentemente, ao seu algoz.
Quando da formatura de Umberto,
Doroteia consegue finalmente sair de sua cidadezinha. O fragmento é longo, mas
importante:
em Doroteia
os sentimentos foram mais perturbadores e até mesmo cruéis: o reconhecimento da
beleza, da grandiosidade de tudo aquilo e, ao mesmo tempo, a percepção da perda
sofrida pelos anos que não conseguira passar ali, tudo que poderia ter sido
também seu e não foi, essa percepção da covardia, sim, covardia, falta de brio,
temor, que a impedira de viver esse tempo, a estupidez por não ter percebido
que a cicatriz em seu rosto não seria tão incapacitante quanto imaginara, e
compreender agora, num turbilhão, que deixar o ser abjeto que a atacou, a
feriu, a estuprou, destruir também a parte mais sonha de sua vida, e essa
descoberta a fez se sentir tão vencida, tão pusilânime, tão miserável, tão
cheia de remorsos que se afastou do grupo e chorou como se estivesse passando
por todo aquele horror outra vez e perdendo a vida de novo... (p. 212-3)
Doroteia representa tanta gente e
tanta luta que, dos seis filhos de Zé Minino e Maria Branca, é a que mais fica
comigo.
***
O livro não termina. Assim como a
vida.
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