Em agosto de
2022, junto com a minha amiga Carolina Freitas, tive a oportunidade de
conversar com a generosa escritora Eliana Alves Cruz sobre o livro “Solitária”
- fundamentais, Eliana e “Solitária”. Encantado com este livro, fui atrás de
outros e cheguei a “O crime do caís do Valongo”, o qual, neste ano, levei às minhas
turmas de língua portuguesa do 2º ano do Colégio Estadual Joaquim Gomes de Sousa,
o Intercultural Brasil-China. O esforço da direção do Colégio permitiu que
comprássemos um livro para cada um dos alunos e o debate da experiência da
leitura coletiva estimulou uma visita ao centro histórico do Rio de Janeiro,
espaço onde se desenvolve o enredo do livro e parte significativa da história
da escravização da população africana trazida para o Brasil. O desejo de
escrever sobre este livro foi adiado, pois pretendia, assim como com outros
títulos, produzir um artigo que pudesse ser submetido a uma revista científica.
O rigor da escrita acadêmica e o tempo de vida não entraram num acordo e,
assim, este espaço, minha Pasárgada, se tornou o lugar para fazer o possível, enquanto
o ideal permanece esperando a sua hora no futuro.
“O crime do
caís do Valongo” utiliza o assassinato de Bernardo Lourenço Viana, crime
efetivamente ocorrido, conforme transcrição do jornal Gazeta do Rio de Janeiro,
para nos levar à capital do Brasil à época da estada da família real portuguesa
e nos contar a história de Muana Lómuè, moçambicana filha de Mutandi e Atinfa. Quem
nos conta a história (contada por Muana) é o português nascido no Brasil Nuno
Alcântara Moutinho, que encontra a caixa com os papéis escritos pelo inglês
João Toole, a quem a escravizada de Bernardo Lourenço Viana, que entre outras
coisas vivia do comércio de escravizados, contou a sua vida a fim de que Toole
documentasse a situação dramática e fortalecesse o movimento antiescravagista
liderado pela Inglaterra, a generosa (contém ironia).
A morte de
Bernardo me interessa pouco, a menos que consideremos a observação feita por
uma aluna brilhante sobre o aspecto da justiça que autoriza matar a quem nos violenta
(em muitos sentidos, por favor). Estaríamos, portanto, no campo da legítima
defesa? Se os escravizados matassem a todos os seus senhores, seria legítima
defesa? (Talvez, com a legislação de hoje, sim. Mas recebemos notícias de
escravos modernos em fazendas no Sul do país, em confecções clandestinas em
grandes cidades e não me parece que haja um movimento no sentido do que Djonga cantou
como “fogo nos racistas” – e nos escravagistas também) enfim, a morte de
Bernardo só importa na medida em que a investigação nos traz a história de Muana,
e mais resumidamente a de Marianno Benguella e da menina Roza.
O texto foi
um pouco difícil para algumas alunas porque as cenas de violência funcionaram
como “gatilho”, o que impediu que algumas prosseguissem. Temos um debate importante
aqui: por que livros como este e, por exemplo, “Olhos d’água”, de Conceição
Evaristo, amedrontam parte da nossa população que convive com o noticiário do
massacre de tantos e tantas cotidianamente? Este livro amplia o medo da
violência, que alimenta o ideário da segurança que elege os assassinos das
pessoas e das personagens destas mesmas histórias? Afinal, quem tem medo de
Conceição Evaristo? E por quê? (Nada é tão simples, mas temos que caminhar para
esse debate.)
O gatilho
impediu que encontrassem o bem-humorado Nuno Alcântara e seu amor pela bela e
trabalhadora Tereza, impediu que soubessem que Muana sabia ler e escrever e,
por conta da sua história, entendia alguns idiomas, de modo que sua
inteligência era uma ferramenta nas artimanhas necessárias à própria
sobrevivência e à do grupo. Quem foi até o fim teve condições de se deslumbrar
com a força das coisas que há entre o céu e a terra e que não cabem em nossa vã
filosofia (pegaram a referência gasta, não?), mas que, intuitivamente, Muana
conseguia organizar. Quem conseguiu ir depois do fim, e foi até o centro
histórico do Rio de Janeiro, espaço conhecido como “Pequena África”, pôde
entender o modo pelo qual as fortunas e as misérias se fizeram, e se
acumularam, no decorrer da formação dessa junção de três raças tristes – mas apenas
duas escravizadas.
Por fim, três
momentos destacados durante o café literário que fizemos para trocar ideias sobre
o livro:
1) A capacidade
de ler e escrever para sobreviver
Não é nada
novo, mas é interessante como, em parte das histórias que tenho lido, a heroína
aprende a ler e a escrever de uma forma quase que clandestina. Parece que elas
precisaram roubar também isso do colonizador para saber o que ele escreve e,
quando escreve, documenta. Além de Muana, lembro rapidamente de Kehinde, de “O
defeito de cor”, da Ana Maria Gonçalves, e a Isabel das Santas Virgens, de “Carta
à rainha louca”, de Maria Valéria Rezende – embora não esteja convencido que é
possível aproximar essa última, posto que é branca.
A escrita e a
leitura é imprescindível para a luta. A pergunta que fica, agora em 2023,
quando a grande maioria da população está alfabetizada, é: o que acontece? Por que
continuamos injustos se estamos “esclarecidos”? (A pergunta será um tanto
infantil, mas isso não a faz menor para entender as escolhas da maioria pelos
verdugos.)
2) No
terceiro dia, o renascimento
Depois que Muana
e seu marido, o belo Umpulla, foram pegos transando, foram torturados e deixados
dois dias sem alimento. Conta Muana ao inglês Toole: “Aquele homem nos levou
para uma cela desabitada e nos bateu muito. Lá dentro havia vários instrumentos
estranhos. Foi a primeira grande surra da minha vida. Nos colocou presos a
argolas fixadas na parede e sem comida por dois dias. No terceiro
nos atiraram alguma comida, pois viramos mercadoria.”
(p. 121).
Para além do
debate sobre a capacidade da cultura eurocêntrica de transformar algo natural
como o sexo em algo sujo, que também está no romance, a referência bíblica é um
soco no estômago – como toda boa literatura: no terceiro dia, o homem branco
(?) renasce deus, a mulher e o homem negros, mercadorias, propriedade privada.
O que dizer mais?
3) O peso da
história
O engraçado
Nulo invadiu a casa do canalha falecido e consegue tirar de lá o baú “não muito
grande e dentro dele a íntegra dos relatos da Moçambicana natural do monte
Nomuli” (p. 192). Embora o baú não fosse muito grande, minha aluna destacou que
valeu a Nulo uma queda e uma dor nas costas. Sua astuta leitura lhe fez pensar
que não era o peso literal do baú o que pesava, mas a carga das histórias, as
violências e as duras sobrevivências arrancadas de um sistema opressor o que
pesava.
Dizer mais o
quê?
***
Sim.
Obrigado, Eliana.
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