25.12.23

Diário de leitura: O crime do caís do Valongo, de Eliana Alves Cruz

 


Em agosto de 2022, junto com a minha amiga Carolina Freitas, tive a oportunidade de conversar com a generosa escritora Eliana Alves Cruz sobre o livro “Solitária” - fundamentais, Eliana e “Solitária”. Encantado com este livro, fui atrás de outros e cheguei a “O crime do caís do Valongo”, o qual, neste ano, levei às minhas turmas de língua portuguesa do 2º ano do Colégio Estadual Joaquim Gomes de Sousa, o Intercultural Brasil-China. O esforço da direção do Colégio permitiu que comprássemos um livro para cada um dos alunos e o debate da experiência da leitura coletiva estimulou uma visita ao centro histórico do Rio de Janeiro, espaço onde se desenvolve o enredo do livro e parte significativa da história da escravização da população africana trazida para o Brasil. O desejo de escrever sobre este livro foi adiado, pois pretendia, assim como com outros títulos, produzir um artigo que pudesse ser submetido a uma revista científica. O rigor da escrita acadêmica e o tempo de vida não entraram num acordo e, assim, este espaço, minha Pasárgada, se tornou o lugar para fazer o possível, enquanto o ideal permanece esperando a sua hora no futuro.

“O crime do caís do Valongo” utiliza o assassinato de Bernardo Lourenço Viana, crime efetivamente ocorrido, conforme transcrição do jornal Gazeta do Rio de Janeiro, para nos levar à capital do Brasil à época da estada da família real portuguesa e nos contar a história de Muana Lómuè, moçambicana filha de Mutandi e Atinfa. Quem nos conta a história (contada por Muana) é o português nascido no Brasil Nuno Alcântara Moutinho, que encontra a caixa com os papéis escritos pelo inglês João Toole, a quem a escravizada de Bernardo Lourenço Viana, que entre outras coisas vivia do comércio de escravizados, contou a sua vida a fim de que Toole documentasse a situação dramática e fortalecesse o movimento antiescravagista liderado pela Inglaterra, a generosa (contém ironia).

A morte de Bernardo me interessa pouco, a menos que consideremos a observação feita por uma aluna brilhante sobre o aspecto da justiça que autoriza matar a quem nos violenta (em muitos sentidos, por favor). Estaríamos, portanto, no campo da legítima defesa? Se os escravizados matassem a todos os seus senhores, seria legítima defesa? (Talvez, com a legislação de hoje, sim. Mas recebemos notícias de escravos modernos em fazendas no Sul do país, em confecções clandestinas em grandes cidades e não me parece que haja um movimento no sentido do que Djonga cantou como “fogo nos racistas” – e nos escravagistas também) enfim, a morte de Bernardo só importa na medida em que a investigação nos traz a história de Muana, e mais resumidamente a de Marianno Benguella e da menina Roza.

O texto foi um pouco difícil para algumas alunas porque as cenas de violência funcionaram como “gatilho”, o que impediu que algumas prosseguissem. Temos um debate importante aqui: por que livros como este e, por exemplo, “Olhos d’água”, de Conceição Evaristo, amedrontam parte da nossa população que convive com o noticiário do massacre de tantos e tantas cotidianamente? Este livro amplia o medo da violência, que alimenta o ideário da segurança que elege os assassinos das pessoas e das personagens destas mesmas histórias? Afinal, quem tem medo de Conceição Evaristo? E por quê? (Nada é tão simples, mas temos que caminhar para esse debate.)

O gatilho impediu que encontrassem o bem-humorado Nuno Alcântara e seu amor pela bela e trabalhadora Tereza, impediu que soubessem que Muana sabia ler e escrever e, por conta da sua história, entendia alguns idiomas, de modo que sua inteligência era uma ferramenta nas artimanhas necessárias à própria sobrevivência e à do grupo. Quem foi até o fim teve condições de se deslumbrar com a força das coisas que há entre o céu e a terra e que não cabem em nossa vã filosofia (pegaram a referência gasta, não?), mas que, intuitivamente, Muana conseguia organizar. Quem conseguiu ir depois do fim, e foi até o centro histórico do Rio de Janeiro, espaço conhecido como “Pequena África”, pôde entender o modo pelo qual as fortunas e as misérias se fizeram, e se acumularam, no decorrer da formação dessa junção de três raças tristes – mas apenas duas escravizadas.


Por fim, três momentos destacados durante o café literário que fizemos para trocar ideias sobre o livro:

1) A capacidade de ler e escrever para sobreviver

Não é nada novo, mas é interessante como, em parte das histórias que tenho lido, a heroína aprende a ler e a escrever de uma forma quase que clandestina. Parece que elas precisaram roubar também isso do colonizador para saber o que ele escreve e, quando escreve, documenta. Além de Muana, lembro rapidamente de Kehinde, de “O defeito de cor”, da Ana Maria Gonçalves, e a Isabel das Santas Virgens, de “Carta à rainha louca”, de Maria Valéria Rezende – embora não esteja convencido que é possível aproximar essa última, posto que é branca.

A escrita e a leitura é imprescindível para a luta. A pergunta que fica, agora em 2023, quando a grande maioria da população está alfabetizada, é: o que acontece? Por que continuamos injustos se estamos “esclarecidos”? (A pergunta será um tanto infantil, mas isso não a faz menor para entender as escolhas da maioria pelos verdugos.)

2) No terceiro dia, o renascimento

Depois que Muana e seu marido, o belo Umpulla, foram pegos transando, foram torturados e deixados dois dias sem alimento. Conta Muana ao inglês Toole: “Aquele homem nos levou para uma cela desabitada e nos bateu muito. Lá dentro havia vários instrumentos estranhos. Foi a primeira grande surra da minha vida. Nos colocou presos a argolas fixadas na parede e sem comida por dois dias. No terceiro nos atiraram alguma comida, pois viramos mercadoria.” (p. 121).

Para além do debate sobre a capacidade da cultura eurocêntrica de transformar algo natural como o sexo em algo sujo, que também está no romance, a referência bíblica é um soco no estômago – como toda boa literatura: no terceiro dia, o homem branco (?) renasce deus, a mulher e o homem negros, mercadorias, propriedade privada.

O que dizer mais?

                                


3) O peso da história

O engraçado Nulo invadiu a casa do canalha falecido e consegue tirar de lá o baú “não muito grande e dentro dele a íntegra dos relatos da Moçambicana natural do monte Nomuli” (p. 192). Embora o baú não fosse muito grande, minha aluna destacou que valeu a Nulo uma queda e uma dor nas costas. Sua astuta leitura lhe fez pensar que não era o peso literal do baú o que pesava, mas a carga das histórias, as violências e as duras sobrevivências arrancadas de um sistema opressor o que pesava.

Dizer mais o quê?


***

Sim. Obrigado, Eliana.








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