27.1.24

Diário de leitura: Salvar o fogo, Itamar Vieira Junior

 


Eu já sei e você já sabe: não vai dar tempo. Assim que andemos sem apuro que a estrada não termina quando terminamos – o caminho, talvez. Chego então ao segundo livro de Itamar Vieira Junior, de quem li o já clássico "Torto arado", em dezembro de 2021¹. Continuamos enfim essa mesma história antiga: a de lutar para dar luz aos seres que lutaram muito (ou sobreviveram bastante) e falaram pouco – até porque a oralidade precisa do tempo, e o tempo escassa. Novamente, Itamar coloca mulheres no centro da tormenta, sem luz, sem holofotes, vivendo de ser suporte para que os seus tentem. Novamente a luta pela terra, novamente a presença infame, e permanente, do capataz, do capitão do mato, do cobrador de imposto, do assemelhado esquecido de si que prefere a proximidade com o poder que ele mesmo autoriza.

“Salvar o fogo” escreve-se sob o signo de várias viradas (“estadunidenses” que somos, contém ironia, a expressão atual seria plot twist), todas duramente verossímeis – algumas até demais. Me fez pensar no comentário comum dos mais velhos sobre “melhorar a raça/o cabelo” (fruto de “barriga limpa”, p. 32), casando com alguém mais claro – e o que de poder isto concede àquele “mais claro”; sobre o sonho de vencer na vida migrando para as grandes cidades; sobre a presença do cristianismo, suas igrejas e seus demônios, imposta à força sobre a história dos povos originários, e dos que foram escravizados e obrigados ao trabalho sem remuneração, sem compensação; sobre como sobreviver mais 24h é a grande revolução para a maioria da população – e daquelas mulheres, violentadas pela vida, pelos maridos e pelas leis.

Numa família pobre, a menina Luzia tem seus próprios motivos para ser mais pobre do que todos. A inocência, o pecado original das crianças, e o desejo da mãe de que encontre um bom marido, que lhe dê uma vida melhor, terminam por levá-la a uma desgraça e a uma dureza que transformam o mundo em silêncio e vontade de sossego – impossíveis para quem precisa trabalhar para comprar o que comer.

Como dito, é um livro de protagonistas mulheres, cuja força é a capacidade de resistir – ou, para usar uma pobre palavra da moda, a resiliência. Sobreviver a situações pelas quais nenhum ser humano deveria passar é a fortaleza dessas mulheres. Em contraponto, a participação masculina é a força que não para em pé, que desnorteia e vira violência, quase sempre, contra as mulheres que lhes dão suporte. Aqui, igual como em vários outros romances que li ultimamente, entre eles, “O crime no cais do Valongo”, de Eliana Alves Cruz, “Tudo é rio”, de Carla Madeira, “Olhos d’água”, de contos, de Conceição Evaristo, há uma enorme generosidade para entender a fraqueza desse homem forte, que se vira contra quem o ama. (Da minha fraqueza, é generosidade demais para mim.) Em “Salvar o fogo”, até os cobradores de impostos, os capitães do mato, são justificados.

(De “Torto arado”, reencontramos Belonísia, que, vizinha de Maria Cabocla, irmã de Luzia, protagonista de “Salvar o fogo” - como a memória não ajuda, é necessário voltar ao primeiro para lembrar que Maria Cabocla já nos é familiar.)

Por fim, para que o tempo de vocês não se perda além do necessário (porque isso aqui são só palavras sobre palavras; o importante é ir ao livro), destaco três pontos que chamam a atenção e ficaram comigo mesmo depois de terminada a leitura.

A compreensão do maltrato

O noticiário contemporâneo (fora dos canais abertos) está carregado de casos de violência sexual por parte dos novos pastores destes “destemplos”. Assim que, quando descobri a existência de um mosteiro, que oferecia uma escola para as crianças pobres locais, já intuí a violência a que os meninos estariam submetidos. Óbvio como a certeza de que vai acontecer de novo.

A tragédia é grande, mas pode piorar se os ouvidos que escutam a denúncia nada puderem fazer porque tiram a própria subsistência da mão que lhe apedreja. Saindo do livro de Itamar, para que o spoiler (virei realmente um gringo - contém ironia) não seja exagerado, é como os moradores de Brumadinho que se colocaram contra a punição da Vale privatizada. Uma coisa é o sonho, o ideal de pureza; outra, a realidade e sua política da força. Quem não tem força se alia a quem tem. Eis o perdão dos capatazes.

Não há redenção. Não há vingança. Não como as palavras sugerem. A redenção e a vingança são sempre mesquinhas – para todos os lados. A redenção e a vingança são a sobrevivência possível.

As crianças

A moral dos bons livros é sempre mais complexa, e interessante, do que a simplificação dos bons sentimentos de algum ensinamento cristão. Assim, as crianças são frutos do meio e, portanto, bichos, se o meio for a selva. Impiedosas, podem dar vazão ao ódio que aprenderam, ou gostaram, do mundo. Há mais coisas entre o céu e a terra do que julga a nossa vã pedagogia e, para sobrevivermos melhor, “Precisamos falar sobre Kevin”. Os psicopatas existem e alguns são até eleitos.

Luzia tem uma deformação nas costas, uma corcunda, algo que a marca como alvo do ódio, da injúria e das pedradas dos adultos – e das crianças. Injuriada, a criança (menino, é interessante deixar claro) decide destruir a casa – mesmo sem saber o que é destruir a casa. A criança (menino) cresce para o homem chicote, raivoso. E, quando “branca”, e menino, e herdeira, constitui-se, muito antes da hora, como reis do mundo. (Como educador, fico com a pergunta: como educar o filho do rei para um mundo mais igualitário? Um mundo em que a própria posição de rei entra em xeque?)

As crianças não são fundamentais em “Salvar o fogo”, mas o livro me despertou para a idealização com a qual, nós, os adultos da festa, fantasiamos esses pequenos adultos. Evidente, não se trata da coisa fácil do ser bom ou mau.

A igreja

A igreja é o caos. Necessitando de um demônio para combater, não teve, não tem, nunca terá dificuldades para materializá-lo naqueles que se coloquem no seu caminho – um caminho de poder, como se sabe. O que o povo faria se não tivesse rezando, ou trabalhando? Se não tivesse sentindo culpa e tentando transferi-la para algo fora de si?

Tendo ganho as terras de uma proprietária, cuja contrapartida foi a instalação de uma escola, o mosteiro cobra impostos e seus capitães do mato, mais reais que o rei, afirmam: “a Igreja era muito generosa em não cobrar juros” (p. 37). Não é necessário dizer que a família dos pagadores de imposto estava ali antes da Igreja, antes da proprietária, junto com a família dos cobradores de imposto. (Não é necessário falar dos carrões, das propriedades milionárias dos seguidores de Cristo do nosso tempo, enquanto Cristo não acumulou um pedaço de chão.)

Luzia, a corcunda atacada pelas crianças e odiada pela gente da Tapera, vive de lavar as roupas do mosteiro e o mosteiro vive dos impostos que a gente da Tapera e a própria Luzia pagam, inclusive para o “salário” dos capitães do mato.

O que me impressiona é como essa/s história/s se repete/m.

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¹https://www.blogger.com/blog/post/edit/preview/10895019/2120933610523566271 

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