Eu já sei e você já sabe: não vai
dar tempo. Assim que andemos sem apuro que a estrada não termina quando
terminamos – o caminho, talvez. Chego então ao segundo livro de Itamar Vieira
Junior, de quem li o já clássico "Torto arado", em dezembro de 2021¹. Continuamos
enfim essa mesma história antiga: a de lutar para dar luz aos seres que lutaram
muito (ou sobreviveram bastante) e falaram pouco – até porque a oralidade
precisa do tempo, e o tempo escassa. Novamente, Itamar coloca mulheres no
centro da tormenta, sem luz, sem holofotes, vivendo de ser suporte para que os
seus tentem. Novamente a luta pela terra, novamente a presença infame, e
permanente, do capataz, do capitão do mato, do cobrador de imposto, do
assemelhado esquecido de si que prefere a proximidade com o poder que ele mesmo
autoriza.
“Salvar o fogo” escreve-se sob o
signo de várias viradas (“estadunidenses” que somos, contém ironia, a expressão
atual seria plot twist), todas duramente verossímeis – algumas até demais. Me fez
pensar no comentário comum dos mais velhos sobre “melhorar a raça/o cabelo”
(fruto de “barriga limpa”, p. 32), casando com alguém mais claro – e o que de
poder isto concede àquele “mais claro”; sobre o sonho de vencer na vida
migrando para as grandes cidades; sobre a presença do cristianismo, suas
igrejas e seus demônios, imposta à força sobre a história dos povos
originários, e dos que foram escravizados e obrigados ao trabalho sem
remuneração, sem compensação; sobre como sobreviver mais 24h é a grande
revolução para a maioria da população – e daquelas mulheres, violentadas pela
vida, pelos maridos e pelas leis.
Numa família pobre, a menina
Luzia tem seus próprios motivos para ser mais pobre do que todos. A inocência, o
pecado original das crianças, e o desejo da mãe de que encontre um bom marido,
que lhe dê uma vida melhor, terminam por levá-la a uma desgraça e a uma dureza
que transformam o mundo em silêncio e vontade de sossego – impossíveis para
quem precisa trabalhar para comprar o que comer.
Como dito, é um livro de
protagonistas mulheres, cuja força é a capacidade de resistir – ou, para usar
uma pobre palavra da moda, a resiliência. Sobreviver a situações pelas quais
nenhum ser humano deveria passar é a fortaleza dessas mulheres. Em contraponto,
a participação masculina é a força que não para em pé, que desnorteia e vira
violência, quase sempre, contra as mulheres que lhes dão suporte. Aqui, igual
como em vários outros romances que li ultimamente, entre eles, “O crime no cais
do Valongo”, de Eliana Alves Cruz, “Tudo é rio”, de Carla Madeira, “Olhos d’água”, de contos, de Conceição Evaristo, há uma enorme generosidade para entender a fraqueza
desse homem forte, que se vira contra quem o ama. (Da minha fraqueza, é
generosidade demais para mim.) Em “Salvar o fogo”, até os cobradores de
impostos, os capitães do mato, são justificados.
(De “Torto arado”, reencontramos
Belonísia, que, vizinha de Maria Cabocla, irmã de Luzia, protagonista de “Salvar
o fogo” - como a memória não ajuda, é necessário voltar ao primeiro para
lembrar que Maria Cabocla já nos é familiar.)
Por fim, para que o tempo de
vocês não se perda além do necessário (porque isso aqui são só palavras sobre
palavras; o importante é ir ao livro), destaco três pontos que chamam a atenção
e ficaram comigo mesmo depois de terminada a leitura.
A compreensão do maltrato
O noticiário contemporâneo (fora
dos canais abertos) está carregado de casos de violência sexual por parte dos
novos pastores destes “destemplos”. Assim que, quando descobri a existência de
um mosteiro, que oferecia uma escola para as crianças pobres locais, já intuí a
violência a que os meninos estariam submetidos. Óbvio como a certeza de que vai
acontecer de novo.
A tragédia é grande, mas pode
piorar se os ouvidos que escutam a denúncia nada puderem fazer porque tiram a
própria subsistência da mão que lhe apedreja. Saindo do livro de Itamar, para
que o spoiler (virei realmente um gringo - contém ironia) não seja exagerado, é como os moradores de Brumadinho que se
colocaram contra a punição da Vale privatizada. Uma coisa é o sonho, o ideal de
pureza; outra, a realidade e sua política da força. Quem não tem força se alia
a quem tem. Eis o perdão dos capatazes.
Não há redenção. Não há vingança.
Não como as palavras sugerem. A redenção e a vingança são sempre mesquinhas –
para todos os lados. A redenção e a vingança são a sobrevivência possível.
As crianças
A moral dos bons livros é sempre
mais complexa, e interessante, do que a simplificação dos bons sentimentos de
algum ensinamento cristão. Assim, as crianças são frutos do meio e, portanto,
bichos, se o meio for a selva. Impiedosas, podem dar vazão ao ódio que
aprenderam, ou gostaram, do mundo. Há mais coisas entre o céu e a terra do que
julga a nossa vã pedagogia e, para sobrevivermos melhor, “Precisamos falar
sobre Kevin”. Os psicopatas existem e alguns são até eleitos.
Luzia tem uma deformação nas
costas, uma corcunda, algo que a marca como alvo do ódio, da injúria e das
pedradas dos adultos – e das crianças. Injuriada, a criança (menino, é
interessante deixar claro) decide destruir a casa – mesmo sem saber o que é destruir
a casa. A criança (menino) cresce para o homem chicote, raivoso. E, quando “branca”,
e menino, e herdeira, constitui-se, muito antes da hora, como reis do mundo. (Como educador, fico com a pergunta: como educar o filho do rei para um mundo
mais igualitário? Um mundo em que a própria posição de rei entra em xeque?)
As crianças não são fundamentais
em “Salvar o fogo”, mas o livro me despertou para a idealização com a qual,
nós, os adultos da festa, fantasiamos esses pequenos adultos. Evidente, não se
trata da coisa fácil do ser bom ou mau.
A igreja
A igreja é o caos. Necessitando de
um demônio para combater, não teve, não tem, nunca terá dificuldades para
materializá-lo naqueles que se coloquem no seu caminho – um caminho de poder,
como se sabe. O que o povo faria se não tivesse rezando, ou trabalhando? Se não
tivesse sentindo culpa e tentando transferi-la para algo fora de si?
Tendo ganho as terras de uma
proprietária, cuja contrapartida foi a instalação de uma escola, o mosteiro
cobra impostos e seus capitães do mato, mais reais que o rei, afirmam: “a
Igreja era muito generosa em não cobrar juros” (p. 37). Não é necessário dizer
que a família dos pagadores de imposto estava ali antes da Igreja, antes da
proprietária, junto com a família dos cobradores de imposto. (Não é necessário
falar dos carrões, das propriedades milionárias dos seguidores de Cristo do
nosso tempo, enquanto Cristo não acumulou um pedaço de chão.)
Luzia, a corcunda atacada pelas
crianças e odiada pela gente da Tapera, vive de lavar as roupas do mosteiro e o
mosteiro vive dos impostos que a gente da Tapera e a própria Luzia pagam,
inclusive para o “salário” dos capitães do mato.
O que me impressiona é como essa/s história/s se repete/m.
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¹https://www.blogger.com/blog/post/edit/preview/10895019/2120933610523566271
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