6.3.24

Diário de leitura: O avesso da pele, Jeferson Tenório



Então uma diretora de uma escola do Rio Grande do Sul (e outra do Paraná, e uma deputada estadual do Rio Grande do Sul) achou que não estamos, no ensino médio, na adolescência, em sua maioria, preparados para ler o livro “O avesso da pele”, de Jeferson Tenório, e, então, colocou o autor no grupo daqueles livros que causa medo em determinada parte da sociedade brasileira. O recurso para fortalecer sua avaliação perante o público foi ler fragmentos descontextualizados do livro, de modo a resumir um debate sério e fundamental a um linguajar preconceituoso de dois amantes (linguajar, aliás, que faz parte do imaginário das relações inter-raciais na história desse país estruturalmente racista).

Li-o num fôlego só, no fim do ano passado, e, desde então, estava preparando um artigo para analisar a força e a história que convocam o leitor a ampliar a sua dimensão de literatura (há um povo novo - ? - colocando suas histórias no papel) e de mundo (os condomínios de alta segurança – e isolamento – não são suficientes porque as histórias entram por todos os poros). O artigo não sairá (o tempo tem todo tempo, já eu não), mas a urgência das horas e dos temas tratados me exige palavras. Seguem.

Enquanto para a diretora, o que a assustou foi a questão sexual (mais a linguagem no ato sexual carregado de marcas de uma sociedade racista – que ela não foi capaz de identificar), a mim, o que atormentou foi a sequência de sete abordagens policiais sofridas pelo pai do narrador, uma, com mais de 50 anos, já professor. Qualquer homem negro neste país é capaz de se identificar com essa sequência – a diretora (e a deputada branca) precisaria ser muito maior. Geralmente não transcrevo partes longas, mas, dado o contexto, segue a primeira abordagem, a mais leve, ainda menino:

A primeira vez que você recebeu uma abordagem, você recém havia chegado do Rio de Janeiro e nem sabia que se tratava de um paredão. Você tinha treze anos e estava jogando futebol numa praça com seus amigos da escola: o Caminhão, o Juca, o Sadi, o Nego Tinho, o Michael Jackson e o Pão com Ki-suco. Nos fins de semana vocês costumavam ir naquela praça do bairro Três Figueiras, uma zona nobre de Porto Alegre. Você até podiam jogar bola na Vila Bom Jesus, mas vocês preferiam aquele lugar. Um dia, no meio do jogo, uma viatura da polícia parou ao lado do campo. A princípio, vocês não ligaram, porque vocês não acharam que a coisa era com vocês, no entanto um dos policiais que saíram da viatura entrou na quadra, mandando a porra da bola parar. Depois gritou para todo mundo sentar no chão. Vocês se olharam. Vocês já sabiam o que vinha pela frente. O policial pôs a mão na arma que estava na sua cintura e repetiu, dizendo que não ia falar de novo, caralho, senta logo aí, porra. Vocês sentaram. O outro policial pegou a bola e a colocou debaixo do braço. Perguntaram onde vocês moravam. Na Bonja, respondeu o Caminhão. Os policiais se olharam e continuaram o interrogatório. E por que vocês vêm jogar bola aqui, por que não ficam na vila de vocês? Porque a gente gosta de jogar aqui, respondeu o Pão com Ki-Suco. Os policiais se olharam novamente, dessa vez com ironia. Você são cheiradores de cola? Ninguém respondeu. Alguém aqui cheira cola, loló? Você tomou coragem e disse que não, que ninguém ali era cheirador de cola. Depois eles mandaram todos ficarem de pé e levantarem a camisa. O policial que segurava a bola avisou: a gente tá de olho em vocês, aqui nesse bairro é lugar de gente direita, se a gente souber que vocês fizeram alguma coisa errada por aqui, a gente vai atrás de vocês, entenderam? E todos nós balançamos a cabeça positivamente. Depois o policial pegou a bola e deu balão para o alto. O Pão com Ki-Suco foi atrás dela. Os policiais entraram no carro e foram embora. Vocês seguiram o jogo sem saber bem o que tinha acontecido. (p. 143-144)

Essa passagem não comoveu a educadora. Essa passagem não a fez pensar na construção psicológica de um tipo brasileiro que é sempre o escolhido para ser suspeito, que lota as cadeias, mas não lota as universidades de medicina, nem a magistratura – que, na verdade, só muito recentemente entrou em grande quantidade para as universidades públicas do país; para desespero de uma classe dominante preocupada com a qualidade do ensino (contém ironia). A diretora, preocupada com a linguagem sexual, em março de 2024, não conhece Renato Freitas, nunca ouviu falar em Djonga e, portanto, não conseguiria saber que a história é a mesma, é milhares de vezes a mesma. Tão corriqueira que ela nem notou.

Como educadora, a diretora também não se incomodou com a descrição das condições do exercício da docência – o pai do narrador é professor. E como não foi capaz de se aproximar desse ponto, não conseguiria ir mais longe e pensar nas cicatrizes que cada violência sofrida na pele negra expõe o avesso da pele, aquilo que a pele (da sociedade) esconde. A história da criança que cresce vivendo a experiência de quem não pode errar, a experiência na qual chegar em casa sem ser violentada, todo dia, é uma vitória que muitos não conseguem.

Após alguns períodos e um vômito na camisa, você só quer ir para casa, tomar um banho e descansar. Mas você não pode fazer isso, porque tem mais dez períodos de cinquenta minutos pela frente. Você se transformou numa máquina de dar aulas. Numa máquina de dar explicações. Numa máquina de ei, já pedi silêncio. Numa máquina de ei, preste atenção. Numa máquina de não pode ir ao banheiro agora. Numa máquina de paciência para não espancar aqueles alunos que não querem saber nada de orações subordinadas. Você também não quer saber de orações subordinadas. Mas escola foi feita para isso. Foi feita para aborrecer os alunos. E você sabe que é parte dessa chateação. (p. 19)

Como mulher branca, ela nunca ouviu falar do sofrimento da mulher negra, do medo que uma mulher negra tem de deixar seu filho ir às ruas e da necessidade de que seu filho cresça rápido, com medo suficiente para abaixar eternamente a cabeça (“Eles querem que alguém\ Que vem de onde nós vem\ Seja mais humilde, baixe a cabeça\ Nunca revide, finja que esqueceu a coisa toda”) e conseguir voltar vivo para casa. Ela não conseguiria se solidarizar e entender que os tratamentos psicológicos tão na moda atualmente (e até acessíveis) nunca pensaram a mulher preta, que tinha e tem que lidar com uma história de resistência dissimulada.

Provável eleitora da direita, quer dizer, do Bolsonaro, ela se chocou com as falas das amigas da menina branca que tem seu primeiro namorado negro: “e então, como ele é? Tem pegada mesmo, como dizem dos negros? E o pau dele? É grande? É verdade que eles são insaciáveis? Qual o cheiro dele?” (p. 30) Foi o registro da curiosa da mulher branca sobre o sexo do homem negro que assustou a diretora branca. É essa curiosidade que não pode ser revelada aos alunos do ensino médio sob o risco de...

Provável eleitora da direita, quer dizer, do Bolsonaro, ela se chocou com a passagem na qual as questões raciais, tão propagandeadas pelo senso comum, aparecem no sexo: “Vem, minha branquinha. Vem, meu negão. Chupa a tua branquinha. Chupa o teu nego. Adora a tua pele branquinha. Adoro a tua pele, meu nego. Adoro tua boceta branca. Adoro teu pau preto.” (p. 31)

A violência do que se diz (e do por que se diz) não causou espanto, não mereceu reflexão. O que assustou foi pau, boceta. Os alunos do ensino médio, com o acesso que têm ao infinito mundo digital, não estão prontos para ler “O avesso da pele” mediados por um professor. E nós convivemos com a estupidez e a infantilização de tal forma que não há motivo para crer numa superação nos próximos tempos.

Há, entretanto, uma certeza: outras histórias vão invadir as escolas, as faculdades, os teatros. Um povo que estava de cabeça baixa, envergonhado da sua história, se sentindo culpado, percebeu que há outros culpados pela sua tragédia e conseguiu entrar na disputa das narrativas. Ainda está maioritariamente nas favelas, mas as favelas, hoje em dia, também produzem doutoras e doutores. “Não tem mais jeito. Acabou. Boa sorte.”

2 comments:

  1. Anonymous1:43 AM

    Até quando ficaremos calado diante tanta crueldade

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  2. Anonymous1:43 AM

    Nea

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