3.4.24

Diário de leitura: “Quando as traças criaram asas”, de Licia Soares de Souza

 


Os dias atuais são fartos em distopias. (Significará isso algo?) Elas parecem até invadir o noticiário de modo que escritores e comediantes têm dificuldade em não se restringir a copiar as aberrações que as lideranças do mundo são capazes de dizer e fazer – e, para deboche do deboche, ainda são eleitas. Ao que tudo indica, não há motivo para acreditarmos que isso vai passar nos próximos anos – mais provável é que passemos nós, enquanto espécie.

Nesse clima, li há algum tempo “A Nova Ordem”, de Bernardo Kucinski (2019), e agora termino esse mergulho no caos que é “Quando as traças criaram asas” que, entre tantas questões, levanta o problema do eterno e complexo homem-deus, ou homem que se acha deus, no sentido das alterações genéticas que a Ciência contemporânea é capaz de produzir e que, no livro, é a causa de um dos caos (se é que essa frase faz sentido): para combater o aedes aegypti, um cientista criou um híbrido deste mosquito com a traça a fim de que este novo ser se tornasse inimigo “natural” do mosquito da dengue e poupasse a população brasileira (e de Salvador, locus da narrativa). Ocorre que, no livro (e na vida?) a Ciência humana não é capaz de prever todos os desdobramentos de sua criação. O resultado é que as traças, que adoram papel, agora podem voar.

Escrevi que eram mais de um caos (o que só funciona se o leitor, a leitora, me permitir o excesso nas figuras de linguagem) e me refiro ao fato de que o surgimento das traças devoradoras de livros se dá durante o abominável desgoverno que nos desgovernou no caos pandêmico (agora, já é suficiente), reeleito para um novo mandato de 2022 ao apocalipses. A distopia biológica soma-se à distopia política. O livro “brinca” com a imaginação de como seria esse novo período: o desgoverno aproveitou o desastre científico para apoiar a sua política anticiência e a destruição de livros, ao tempo que incentiva a perseguição de cientistas e estudantes, atacando e destruindo faculdades, bibliotecas e outros centros de pesquisas, no caminho, ataca qualquer oposição.

Nesta realidade alternativa (?), a resistência passa necessariamente por uma comunicação que não se valha da tecnologia de telefonia (e internet). É preciso estar longe das redes digitais, mas é preciso construir redes reais para conseguir salvar alguns livros e, assim, metonimicamente, salvar a nossa memória e, com ela, a história do país e da humanidade. Sem os livros de papel, o risco é que todos os livros sejam digitais e, desta forma, que o governo tenha mais facilidade para controlar o que o povo pode ler. Mais: como em 1984, de Orwell, possa altera nas narrativas, ficcionais ou não, de modo a alterar o passado. (Foi golpe ou foi revolução? Foi golpe ou impeachment? A afirmação a seguir dá o que pensar: “Uma civilização sem escrita está fadada a morrer, e não confiamos nestas bibliotecas ditas da extrema direita. Eles vão modificar nossos conteúdos.” (p.112)

Professora universitária, a autora carregas nas tintas do debate político (que bom!):

_As elites brasileiras não têm vergonha. Elas não tem pudor em apoiar governos que praticam tortura, que agem com violência. As elites não têm escrúpulos em apoiar ditaduras. Elas mandam matar. Aqui ainda vigora a mentalidade das capitanias hereditárias, e tem o latifúndio, fortunas às custas do povo. (p. 50)

O debate está aberto: “uma civilização sem escrita está fadada a morrer”?; alguma elite no mundo tem vergonha em se aproveitar dos mais humildes?

Por fim, o debate que sempre está na mesa quando se critica os primeiros governos de esquerda depois da ditadura militar: “Me bati contra esse pensamento de consumismo o tempo todo, mas a ideia era primeiro tirar o povo da miséria e depois conscientizar, e nos lascamos.” (p. 60)

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Sábado, dia 06 agora, estarei com a escritora para falarmos desse livro no nossa canal no YouTube. O bate-papo ficará disponível posteriormente para quem quiser passar por lá.


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