Os dias atuais são fartos em
distopias. (Significará isso algo?) Elas parecem até invadir o noticiário de
modo que escritores e comediantes têm dificuldade em não se restringir a copiar
as aberrações que as lideranças do mundo são capazes de dizer e fazer – e, para
deboche do deboche, ainda são eleitas. Ao que tudo indica, não há motivo para
acreditarmos que isso vai passar nos próximos anos – mais provável é que
passemos nós, enquanto espécie.
Nesse clima, li há algum tempo “A
Nova Ordem”, de Bernardo Kucinski (2019), e agora termino esse mergulho no caos
que é “Quando as traças criaram asas” que, entre tantas questões, levanta o
problema do eterno e complexo homem-deus, ou homem que se acha deus, no sentido
das alterações genéticas que a Ciência contemporânea é capaz de produzir e que,
no livro, é a causa de um dos caos (se é que essa frase faz sentido): para
combater o aedes aegypti, um
cientista criou um híbrido deste mosquito com a traça a fim de que este novo
ser se tornasse inimigo “natural” do mosquito da dengue e poupasse a população
brasileira (e de Salvador, locus da
narrativa). Ocorre que, no livro (e na vida?) a Ciência humana não é capaz de
prever todos os desdobramentos de sua criação. O resultado é que as traças, que
adoram papel, agora podem voar.
Escrevi que eram mais de um caos
(o que só funciona se o leitor, a leitora, me permitir o excesso nas figuras de
linguagem) e me refiro ao fato de que o surgimento das traças devoradoras de
livros se dá durante o abominável desgoverno que nos desgovernou no caos
pandêmico (agora, já é suficiente), reeleito para um novo mandato de 2022 ao apocalipses.
A distopia biológica soma-se à distopia política. O livro “brinca” com a
imaginação de como seria esse novo período: o desgoverno aproveitou o desastre
científico para apoiar a sua política anticiência e a destruição de livros, ao
tempo que incentiva a perseguição de cientistas e estudantes, atacando e
destruindo faculdades, bibliotecas e outros centros de pesquisas, no caminho,
ataca qualquer oposição.
Nesta realidade alternativa (?),
a resistência passa necessariamente por uma comunicação que não se valha da
tecnologia de telefonia (e internet). É preciso estar longe das redes digitais,
mas é preciso construir redes reais para conseguir salvar alguns livros e,
assim, metonimicamente, salvar a nossa memória e, com ela, a história do país e
da humanidade. Sem os livros de papel, o risco é que todos os livros sejam
digitais e, desta forma, que o governo tenha mais facilidade para controlar o
que o povo pode ler. Mais: como em 1984, de Orwell, possa altera nas
narrativas, ficcionais ou não, de modo a alterar o passado. (Foi golpe ou foi
revolução? Foi golpe ou impeachment? A afirmação a seguir dá o que pensar: “Uma
civilização sem escrita está fadada a morrer, e não confiamos nestas bibliotecas
ditas da extrema direita. Eles vão modificar nossos conteúdos.” (p.112)
Professora universitária, a
autora carregas nas tintas do debate político (que bom!):
_As elites
brasileiras não têm vergonha. Elas não tem pudor em apoiar governos que
praticam tortura, que agem com violência. As elites não têm escrúpulos em
apoiar ditaduras. Elas mandam matar. Aqui ainda vigora a mentalidade das
capitanias hereditárias, e tem o latifúndio, fortunas às custas do povo. (p.
50)
O debate está aberto: “uma
civilização sem escrita está fadada a morrer”?; alguma elite no mundo tem
vergonha em se aproveitar dos mais humildes?
Por fim, o debate que sempre está
na mesa quando se critica os primeiros governos de esquerda depois da ditadura
militar: “Me bati contra esse pensamento de consumismo o tempo todo, mas a
ideia era primeiro tirar o povo da miséria e depois conscientizar, e nos
lascamos.” (p. 60)
***
Sábado, dia 06 agora, estarei com
a escritora para falarmos desse livro no nossa canal no YouTube. O bate-papo
ficará disponível posteriormente para quem quiser passar por lá.
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