O filme começa com uma cena bem significativa: um professor, negro, utiliza um termo agressivo para o povo negro estadunidense (nigger, algo como crioulo) e uma aluna branca se sente ofendida. À solicitação da aluna para que o professor use outro termo, ele prefere dizer que, se ele superou esta questão, ela também será capaz de fazê-lo. Não por essa razão, mas por uma sequência de histórias parecidas, o professor e reconhecido escritor Thelonious "Monk" Ellison (Jeffrey Wright) é orientado a tirar uma temporada de férias. Isso o leva de volta a Boston, sua cidade natal, onde reencontra os irmãos Lisa (Tracee Ellis Ross) e Clifford Ellison (Sterling K. Brown, conhecido por aqui por viver Randall Pearson em “This is us”), ambos médicos. Clifford não mora na cidade e Lisa é a responsável por cuidar da mãe Agnes (a linda Leslie Uggams), que começa a apresentar sinais da doença de Alzheimer (já seria possível problematizar o filme a partir daqui num olhar que observasse a questão do cuidado como um desígnio divino destinado à mulher). Este é o cenário para os naturais acertos de contas que a família (e as famílias) travará entre seus componentes tentando acertar as arestas do passado. Tudo piora quando Lisa sofre um infarto e morre (sua última frase, já que sabia da doença: “Eu levei uma vida da qual me orgulho.”).
Se você chegou até aqui, percebeu que nesta família de negros estadunidenses ninguém acabou entregue aos trabalhos subalternos e mal pagos, ou à criminalidade, ninguém virou atleta, ou rapper. Filhos de médico, à exceção de Monk, o protagonista, todos são médicos. Também Coraline (Erika Alexander), mulher negra, que se tornará namorada de Monk, é uma defensora pública. Se sucesso se define por alcançar as profissões mais valorizadas, os negros de “Ficção americana” são todos exemplos de histórias de êxito, portanto, outras histórias, igualmente factíveis, que a trama coloca na mesa e, ao fazer isso, chama a atenção para uma reflexão contra um estereótipo que definiu determinados papéis, “esperados”, para os afrodescendentes no imaginário alimentado pela propaganda, pela televisão, pelo cinema, enfim, pela indústria cultural. Daí que, quando surgem falas como “eles querem um livro de um homem negro”, ou, por exemplo, no título do livro da escritora negra (é importante destacar isso) Sintara Golden (Issae Rae), “We’s live in da ghetto”, saltam (deveriam) perguntas ao espectador: qual homem negro?, qual mulher negra?, quem fala “we’s live”? – em inglês, vocês sabem (?), o correto seria (?) “we are”, ou “we’re”). Trazendo para a nossa realidade: quem fala “é nós”?
Então, chegamos ao ponto já insinuado no título desta resenha, retirada da palestra de Chimamanda Ngozi Adichie, o perigo da história única é não permitir que outras formas histórias também preencham o imaginário social e, assim, se não imaginamos um negro como médico, como desembargador, como cientista, a própria comunidade não terá amparo para ver a si mesma nessas funções. Chimamanda chama a atenção para a sua construção como leitora e, em consequência, como jovem escritora (o fragmento é longo, mas importante):
Passei a infância num campus universitário no leste da Nigéria. Minha mãe diz que comecei a ler aos dois anos de idade, embora eu ache que quatro deva estar mais próximo da verdade. Eu me tornei leitora cedo, e o que lia eram livros infantis britânicos e americanos.
Também me tornei escritora cedo. Quando comecei a escrever, lá pelos sete anos de idade — textos escritos a lápis com ilustrações feitas com giz de cera que minha pobre mãe era obrigada a ler —, escrevi exatamente o tipo de história que lia: todos os meus personagens eram brancos de olhos azuis, brincavam na neve, comiam maçãs e falavam muito sobre o tempo e sobre como era bom o sol ter saído.
Escrevia sobre isso apesar de eu morar na Nigéria. Eu nunca tinha saído do meu país. Lá, não tinha neve, comíamos mangas e nunca falávamos do tempo, porque não havia necessidade. Meus personagens também bebiam muita cerveja de gengibre, porque os personagens dos livros britânicos que eu lia bebiam cerveja de gengibre. Não importava que eu não tivesse ideia do que fosse cerveja de gengibre. Durante muitos anos, tive um desejo imenso de provar cerveja de gengibre.
O menino negro que só viu médicos brancos tem dificuldade para saber que os meninos negros também podem virar médicos. A menina que só viu heroínas brancas não consegue imaginar que existam heroínas negras. E, neste sentido, vale destacar o frame com o quadro (foto) que “enfeita” a parede enquanto Monk se dirige para a reunião final sobre o livro que deve ser premiado (ele, Monk, está, junto com mais quatro escritores, selecionando o novo nome que ganhará um prêmio importante para a literatura – detalhe: o júri é formado por três pessoas brancas e duas negras; duas mulheres e três homens).
Na foto, uma criança participa de um teste psicológico, elaborado por Mamie Phipps Clark¹, para decidir suas concepções (se é boa, se é má, se é bonita, se é feia) a respeito de duas bonecas, uma preta e uma branca (creio que vale destacar que as bonecas tiveram que ser pintadas, pois, óbvio, não se fabricavam bonecas pretas). O teste foi replicado várias vezes e vídeos dele estão disponíveis no youtube². Com o passar do tempo, os resultados variaram muito (os tempos são, quase, outros), mas, durante muito tempo, crianças negras ou brancas escolhiam a boneca branca como legal e a boneca negra como má.
Há não muito tempo, nas telenovelas brasileiras, a presença de atores negros se restringia à representação de marginais (em todos os sentidos) e personagens em profissões subalternas. Como protesto, o rapper Mano Brown, da banda Racionais MC’s, se recusou durante anos a se apresentar em seus programas, inclusive no programa “Esquenta”, da Regina Casé, que foi o programa com maior percentual de negros no palco da televisão brasileira de grande audiência – como crítica, os detratores alegavam que o programa insistia na imagem do negro artista, atleta etc., que “Ficção americana” problematiza.
Não há, evidentemente, solução fácil, nem nos Estados Unidos de Martin Luther King e Malcon X, nem no Brasil da “democracia racial” (contém ironia), mas o filme trouxe para o amplo debate público um tema que passa despercebido e que tem profundas consequências na autoimagem de parte representativa das populações desses países (lembro da menina que se emocionou ao ver a jornalista Maju Coutinho apresentando o Jornal Nacional e que comentou com a mãe que a âncora tinha o cabelo igual ao dela). A afirmação da situação de violência a que está submetida parte dessas nações tem uma função de denúncia incontornável e é importante que se mantenha para possibilitar alguma forma de resistência e de luta para o sonho de um mundo mais generoso para todos (“I have a dream”, o mesmo bom e velho dream). Entretanto, é preciso não perder de vista que não somos, nunca fomos, apenas tristeza, derrota e drogas. Muito pelo contrário, nós também somos príncipes e princesas, cientistas e matemáticos (assista ao filme “Além das estrelas”), somos bons pais e boas mães, bons filhos e bons amigos e, como é óbvio, a maioria de nós passa razoavelmente bem na faculdade da vida e deixa motivos de alegrias e orgulhos para seus descendentes. A maioria de nós pode, ao fim da vida, repetir as palavras da bela irmã de Monk: “Eu levei uma vida da qual me orgulho.”
¹ O teste está descrito no artigo, em inglês, disponível em: file:///C:/Users/Admin/Downloads/doll.study.1947.pdf
² https://www.youtube.com/watch?v=CdoqqmNB9JE
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