23.10.24

Ao homem que parou o dia


Tinha um homem chorando no ônibus.

Um homem desses que se vê na rua e do qual, afinal, não se imagina o choro - ou o dono. Um homem que olhou a morte com familiaridade e descaso, como tantos outros homens - desde o defunto na Rua do Livramento até o enterro da mãe num cemitério sujo do espesso subúrbio de São Gonçalo. Um homem desses, comum, qualquer, que quase morreu - algumas vezes - e, não morrendo, foi se perdendo porque "o homem que nessa terra miserável vive entre feras sente inevitável necessidade de também ser fera..."

Mas eu vi, meninos: ele chorava. Sem desonra nenhuma, ainda que tentando esconder o pranto, tenho certeza que ele chorava baixinho (Porque, parecia, é proibido chorar em público, é vergonhoso incomodar o vizinho. É inadmissível espalhar tragédias. Deixe cada um com sua cota de dor e ódio. Deixe cada um com seu amor e seu medo.) Ele olhava muito para fora do ônibus - tentando, eu não sei, olhar para fora de si. Tentando escapar do espelho imperdoável, e este hábito execrável de multiplicar os homens, das notícias que deixam os dias cinzas e destorcem as horas.

A vida o pegou na descida da ponte, numa manhã quente como o desespero, atrapalhando o trânsito e embrulhando as derrotas sem cuidado e tratamento. A vida fez sua alma dobrar-se sobre o surdo absurdo e ele só podia desmoronar impudicamente em público - como quem tem fé - devagar, tentando esconder o movimento, o soco seco, levado, levantado da rua. Como se se preparasse para sussurrar uma prece - de arrego.

E quando eu olhei para onde o homem olhava, me irmanei e, percebi, eu também chorava - chorava, ali, minha humanidade roída ruína, diminuída, na pressa da rua quente, onde gente vestida de aço corre (e sangra, e chora) e não vê - nem tem tempo de ver a febre vencer a gente. (É do mundo suicida ou vem de mim esta febre?). Nessa pressa de encher o desejo de cada hora, de cada minuto, de cada respiro, de nada e suas fúteis futilidades.

Quando eu olhei para onde ele olhava vi que nosso choro se encontrava com o choro de uma mulher que segurava no colo a cabeça de um homem morto - Pietá, Pietá, outra e tanta vez. Pietá, Pietá, teus tantos filhos não cansam de morrer tanto na encruzilhada de ruas demasiadamente sólidas.

Pude ver o rosto do morto e era o meu e o do homem que chorava e liguei desesperado para meu filho, como quem não pode receber mais nenhuma notícia, como quem precisa dizer eu te amo, como quem, recebendo o recado eterno da vida, precisa ouvir a voz amada, desarmada, e encontrar um refúgio, um refrigerio, um significado no meio do redemundo.

Chorávamos o morto, próximo, e sua nossa semelhança. Mas chorávamos principalmente o próximo, cada vez mais perto de um abraço. 

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Imagem disponível em https://www.romaemportugues.com.br/a-primeira-pieta-do-michelangelo/

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