3.11.24

Diário de leitura: “A construção do idiota: o processo de idiossubjetivação”, de Rubens Casara - os sinais trocados

 


O mundo é complexo e uma parte da humanidade é burra, ou quer ser burra – a ignorância é um refúgio para os espíritos preguiçosos e, no fim, se se comportarem bem direitinho, podem até ser recompensados e subir na cadeia dos prestadores de serviços covardes, como Ronnie Lessa e Élcio Queiroz (Claudio Castro, Ricardo Nunes...) – ou não, como Adriano da Nóbrega. Sem valor nenhum, qualquer valor é suficiente. (Casara oferece os significados de cada conceito, idiota e idiotice, burro e burrice e estúpido e estupidez, mas nesta resenha vamos simplificar – porque é de simplificação que se trata.) O mundo exige atenção e calma para ler textos longos e densos, mas uma parte da humanidade sequer sabe ler – com ferramentas de um multiletramento – e outra parte, que sabe, não quer porque já foi construída pelo avesso (o processo de idiossubjetivação, está entendendo?). Assim, nós já sabemos: o médico pode ser antivacina, o astronauta pode trabalhar com um governo que negue a ciência – e emprestar sua imagem para vender travesseiros da NASA, o ministro da educação pode odiar a educação e o do meio ambiente pode trabalhar para os desmatadores. (Assim também sabemos: a Palestina e a Amazônia desaparecerão e, muito provavelmente, estamos nos preparando para uma guerra maior.) O cúmulo da estupidez é essa pulsão de morte que nos convence de que pior do que está não fica, que invisibilizou quase imediatamente os 700 mil mortos que a condução criminosa da saúde pública do governo Bolsonaro causou.

“Se a inteligência pode ser identificada com as potencialidades do ser e levar ao movimento e à transformação no ‘mundo-da-vida’, a produção da burrice, estupidez e ignorância conduzem ao velamento das potencialidades e funcionam como estratégias voltadas à manutenção do status quo” (p. 25). E, nas campanhas eleitorais mundo afora, os candidatos da ultradireita já não plantam vento, mas a própria tempestade, já não buscam “o conhecimento capaz de melhorar a vida da maioria das pessoas”, o que “é uma violação ética e uma omissão política” (p.25), mas excitam-se na construção de um ambiente irrespirável, literalmente, que leva a pequenas tragédias – entendidas, quase que imediatamente, como acasos – veja as enchentes de Porto Alegre e os freqüentes apagões da cidade mais rica do país, São Paulo. (Metade da humanidade segue acreditando que a saída é a guerra – contra quem? – e que vale a pena pagar o preço. (Como aquele empresário que pode dizer, com tranquilidade, “que morrerão ‘apenas’ 7 mil, 10 mil pessoas” porque, afinal, sabe que o risco de um desses ser alguém que ele ama é zero.

Para fortalecer essa troca de sinais, que faz possível a pessoa que estuda, e tem dúvida, ser tratada com desprezo por quem não estuda, Casara aponta uma série de inversão de valores, começando pelo empobrecimento da linguagem (antes, ter um vocabulário rico seria algo positivo): “Em um quadro de empobrecimento subjetivo e de valorização econômica da ignorância correlato à demonização da educação, da cultura e do pensamento reflexivo (percebidos como atividades degeneradas e ideológicas), cada vez mais pessoas recorrem a uma linguagem empobrecida, bem como a slogans argumentativos, frases feitas, jargões, análises superficiais, perspectivas binárias, rótulos e construções gramaticalmente pobres (sujeito-verbo-complemento), como objetivo de contar com a adesão e a simpatia dos interlocutores.” (p. 41)

Porque o homem simples do povo brasileiro não consegue comer um frango sem se sujar todo de farofa e, habitando no mundo orwelliano, tem um vocabulário, quiçá, de 2000 palavras, onde liberdade quer dizer ter acesso à arma, cujo valor está muito longe do homem simples vestido com as camisas mais falsificadas dos times do país. Isto porque, Casara cita: “o poder sobre as coisas passa pelo poder sobre as palavras” (Dufour, Dany-Robert. L'individu qui vient: ... après le libéralisme) e, para despojar o homem de si mesmo, é necessário tirar-lhe as palavras para, no máximo, quando precise, ele só possa gritar – ou, como orientou o quieto Olavo de Carvalho, o intelectual orgânico (agora, inorgânico) da ignorância, xingar, agredir.

Nesta atualização do dicionário de “1984”, em que líderes apostam na mentira, em fatos alternativos, onde pais vestem seus filhos de soldados e levam-nos para comemorar aniversários em estandes de tiro, simplicidade e estupidez se igualam e o outro, que pensa diferente, se reduz a adversário, quando não inimigo. Nessa atualização, o Jesus que pediu para Paulo guardar sua espada e curou a orelha do soldado romano é substituído por um miliciano treinado pelo Bope, o humilde Jesus que andava com a gente mais simples é trocado pelo pastor milionário, que valoriza a futilidade como quem pretende desfilar sua banalidade de marcas de grifes caras numa passarela dos "vencedores", colocada na estrada para o paraíso celeste.

A solidariedade é negativa numa sociedade da concorrência. “Se ante a aparência era pensada como uma forma de negatividade, a simplificação excessiva reduz a realidade à mera aparência, tornando-a uma positividade.” (p. 42) Daí, o campeonato nacional de mesquinharias soberbas que passam, evidentemente, por aparentar ter (aparentar ter) o carro que empresário emprestou para o clip da música brega e rasteira, que reduz a vida às temáticas mais grosseiras do instinto humano, pelas mil técnicas de intervenção cirúrgicas para alcançar o modelo da aparência ideal, pelos milhares de modos de ganhar dinheiro fácil e rápido para ter tudo o que faz esse ser vazio ser. E, claro, se for preciso fazer algo ilegal, algo que prejudique alguém, não tem problema, pois estamos de volta à selva e eles são os CEO de guerra (esta palavra tão dura e tão vilipendiada) dos próprios carros por aplicativo, das próprias fábricas de bolo de pote – que funcionam nas coisas de casa.

Quanto menos palavras souberem, mais precisarão de intérpretes para lhes traduzir o mundo, de modo que será identificar o inimigo e, portanto, a salvação: a eliminação do inimigo. No mundo simples, só há uma versão do mundo, as outros são aversões. E qualquer raciocínio que coloque isso em questão será um sinal de fraqueza (afinal, estamos em guerra e, na guerra, não há tempo para firulas) e exigirá, para a manutenção da “ordem” a execração pública do divergente.

Se a solidariedade é uma negatividade, o padre Julio Lancellotti é um alvo do ódio dos que têm bastante para comer (“o sujeito perverso – p. 75). Um ódio performado para construir um ódio real e angariar simpatias e votos. Se tudo é aparência e ostentação, “o capitalismo, em sua versão pornográfica, revela-se insaciável: não há limites ao lucro e à acumulação do capitalismo (os inimigos do mercado e do capitalismo financeiro devem ser, portanto, neutralizados). O egoísmo tornou-se uma virtude” (p. 75).

Na febre do consumo, a reflexão é negatividade, enquanto o impulso, sobre tudo o impulso para comprar o que ostentar, o que prova a vitória de quem comprou, o impulso é positividade. Tudo o que não liso, rápido, rasteiro, é negativo. Tudo o que não puder ser consumido 136 caracteres, ou no tempo de um Tik-Tok, é negatividade porque exige leitura e interpretação de texto, e compreensão do mundo – e compreensão só tem valor quando transformada em mercadoria para vender uma solidariedade também vertida mercadoria e ganhadora de atenção nos canais de televisão e da internet, que também catapultarão os futuros candidatos anti-Estado desejosos de entrar no Estado...

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O livro é do primeiro semestre deste ano e, a julgar pelos resultados das eleições municipais do Brasil, conforme se vê as intenções de votos nos Estados Unidos, o cenário se agrava.

 Seguimos.


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