Não sei quantas pessoas indicaram o livro de Max Fisher para entender o mundo atual – para começar, acho que o Gregório Duvivier o indicou no programa “Calma urgente”, mas também tinha lido sua referência no livro da Letícia Cesarino, “O mundo pelo avesso” (que aguarda algumas resenhas aqui). Creio que o professor João Cezar e o juiz Rubens Casara também o indicaram. Enfim, tudo isso para dizer que o livro é realmente fundamental, mas, publicado em 2022, ou seja, cobrindo até a invasão do Capitólio e detendo-se na confirmação dos crimes cometidos por Donald Trump, nós, agora, sabendo o que aconteceu em novembro de 2024, só podemos ficar deprimidos ao terminar a leitura. Ao que tudo indica, apesar do óbvio, a sociedade ocidental não inventou ainda remédio para evitar sua destruição e parte medicada para o abismo – pelo menos, e estou sendo otimista, parte.
“A máquina do caos” é um relatório minucioso (são vários relatórios) do funcionamento das Big Techs do Vale do Sicílio, desde o pensamento que lhes deu origem até os comportamentos dos seus atuais dirigentes – que mantêm o mesmo direcionamento imperialista e de destruição do território alheio (com o caso dos próprios Estados Unidos, nem tão alheio assim, mas sabemos que “o patriotismo é o último refúgio do canalha” e, na verdade, o que impera mesmo é “a guerra de todos contra todos” – a sociedade teria sido criada para diluir essa pulsão de morte) sem o menor constrangimento. Evidentemente, já não é uma lutar por “dinheiro”, mas por dominação, que funciona com um mecanismo de redução de imaginário e, portanto, de redução das possibilidades de reações inesperadas por parte dos usuários. Não à toa, uma das informações que me ficaram é o alto investimento das plataformas em profissionais dos Laboratórios de tecnologias persuasivas¹, que, inocente, eu nem sabia que isso existia. (Imaginem o resto do mundo!) (O que me fez retornar ao “Indústria cultural e sociedade” (Adorno, 2022) e as técnicas de manipulação dos desejos, reduzidos a supermercadificação dos sonhos. A coisa é antiga e todo o caminhar foi para conseguir a sua realização.)
Os exemplos da distribuição de tragédia apresentados no livro são dezenas, mas, colocados em dimensões nacionais – afinal, são países inteiros submetidos a uma gestão difusa das notícias e, portanto, dos medos e dos ódios, o que sugere um número incalculável de vítimas – incluindo ex-funcionários que identificaram os problemas da rede. Grande parte termina tendo que se exilar para não ser assassinada e não colocar seus entes queridos em perigo – o ódio, como vemos, diariamente, não tem limite ético e pode ameaçar crianças em escolas, velhos e todo tipo de pessoa que não tem muito a ver com isso. O Brasil, que está muito presente no livro, tem relembrado os casos de Márcia Tibury, Jean Wyllys e a antropóloga Débora Diniz.
As páginas dedicadas ao Brasil são impressionantes, pois, para mim, destacaram algo estranho: na enxurrada de violência e sofrimento oferecida diariamente pela extrema direita – a fim de dominar a atenção –, eu tinha me perdido e esquecido de muitos casos: como o do desconhecido Carlos Jordy que se catapultou vereador de Niterói ao mandar gravar um vídeo de uma professora em sala de aula, adulterá-lo e postá-lo na internet. Como prêmio pelo crime, a professora teve que se esconder e ele sagrou-se deputado federal, tendo, agora em 2024, conquistado mais de 30% dos votos para ser o prefeito da cidade vizinha à capital do Estado. (Tudo vale mal! Valendo-se de mecanismos parecidos, na própria capital, Alexandre Ramagem conseguiu semelhante aprovação no município.)
O processo passa por um regime de construção de um comportamento de seita, onde as pessoas, reduzidas em seu imaginário social, quase sempre voltado para o consumo, aceitam o tema dos riscos dos imigrantes, do comunismo, do homossexualismo, entre outros, a fim de reforçar uma teoria do mal que, defendendo estes temas, estaria colocando em riscos os valores daquelas pessoas, que já se sentem prejudicadas no jogo da competição social. Em muitos casos, o fato de ser estadunidense, homem e branco não garante mais uma superioridade entre o resto do mundo (estadunidense). Uma teoria do recalque, pouco valorizada, acaba por tomar conta dessa parte da população que, de repente, tem que ver uma mulher preta podendo chegar à presidência dos Estados Unidos.
Na construção das seitas, embora em cada país os nomes sejam diferentes (óbvio) (Olavo de Carvalho, Steve Bannon e Ashin Wirathu, em Miamar), as técnicas de persuasão são as mesmas: alimentar o medo para poder apontar o ódio para os alvos certos – aqueles que colocam os CEOs do ódio nos lugares de poder. No caso brasileiro, são centenas de casos, mas os mais famosos estão ligados ao Movimento Brasil Livre, de Kim Kataguiri – com vários de seus integrantes semialfabetizados, mas espertos, catapultados aos cargos políticos.
Duas questões: que gente é essa incapaz de sentir vergonha? Que povo é esse que, numa espécie de síndrome de Estocolmo, se apaixona pelo seu algoz e elege o fã do torturador, o defensor de chacinas?
Continuamos. (Eu espero.)
***
¹ https://behaviordesign.stanford.edu
No comments:
Post a Comment